O fabuloso destino de Alfredo Casimiro, um casapiano milionário aos 30 anos

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Clara Azevedo

Esta é a história nunca contada de um menino pobre que percebeu aos 30 anos que estava milionário. Um casapiano que acreditou no slogan da sua empresa: "We make it possible." (A Urbanos foi considerada a melhor PME para se trabalhar em 2010.) Como é que ele tornou isto possível?

Nasceu em 1966. Ontem. Viveu uma vida pobre, arrumada, limpa. Teve a noção do que eram cinco tostões, um tostão, dois tostões. "Os outros miúdos tinham jogos, brinquedos; as mães iam ao intervalo levar um bolo; a minha mãe, às vezes, conseguia comprar-me um bolo, mas de casa eu levava uma sandes." Fez o seu primeiro negócio aos dez anos. Foi aluno da Casa Pia. Encontrou um preceptor que lhe disse que ele não tinha jeito para nada. (Estará ele a ler a entrevista - pergunta-se Alfredo Casimiro?) Casou e teve filhas cedo. Fundou uma empresa eleita em 2010 como a melhor PME para se trabalhar. Envolveu a família. Cresceu. Enriqueceu.Qual é o segredo de Alfredo Casimiro?
A entrevista acontece em casa, no country club de Belas. É uma casa imensa, de linhas despojadas, que não revela de forma ostensiva o património que acumulou nos últimos 20 anos. Não é um exibicionista. Nas fotografias pede, sem pedir, algum recato. Não pretende confirmar o cliché do novo-rico que posa na casa com piscina, exuberante. Desfaz-se num sorriso quando a filha mais nova anuncia que chegou a casa: "Pai, pai, pai!" Tem mais duas filhas, do primeiro casamento. A vida delas nem por sombras se parece com aquela que o pai teve. Mas ele teve o prazer de vencer.
A voz é tonitruante. Conta detalhadamente o que viveu. Não esquece pormenores como o de a carne vir da aldeia já arranjada. Ou o gesto do empregado que um dia não lhe deu uma bola de Berlim. Ou o olhar do pai numa conversa decisiva. Ou os anos em que não teve férias para fazer prosperar a empresa. (A Urbanos é hoje muito mais do que uma empresa de mudanças; Casimiro indica que apenas 20 por cento do volume de negócio resulta dessa área.)
A história desta entrevista começa há quase dois anos, quando pela primeira vez quis contar a vida de Alfredo Casimiro. Com polidez, recusou. Só este ano, depois da atribuição do prémio de melhor PME para se trabalhar em Portugal, e sobretudo depois da morte súbita do irmão, anuiu. Está mais sozinho. E dá a cara por um império que está a ser erguido.
Tem quase 44 anos. Às vezes parece que foi há uma eternidade, e não ontem, que tudo começou.

Quando é que teve a noção de que a sua vida podia ser uma coisa extraordinária?

Não tive essa noção. Tive essa necessidade.


Que quadro de vida era o seu? Como é que o vivia? Para perceber a necessidade que sentiu de o mudar.

Os meus pais são migrantes de uma aldeia perto de Alenquer, Cabanas de Torres. O meu pai foi criado no campo, fez o serviço militar, fez a guerra, instalou-se em Lisboa. Nasci em Julho, eles terão casado em Março ou Abril de 1966. Alugaram o chamado "quarto com serventia de cozinha". A minha mãe empregou-se numa fábrica de pilhas, a Tudor. Eu ficava com uns tios-avós que moravam perto, que me mimavam muito. Os donos da casa onde os meus pais viviam não tinham filhos. O homem era contrabandista, daqueles que nos anos 60 iam a Badajoz buscar chocolates e rebuçados para revender em Lisboa. Um dia comi chocolates até quase morrer, literalmente. Aos 16 meses, tive uma colagem completa dos intestinos e estive três semanas internado no hospital Dona Estefânia, no vai não vai.


Foi filho único até 1972. Quem eram os seus amigos?

O bairro onde morávamos era em frente a um bairro de barracas. Essas pessoas, que moravam num ambiente degradado, eram os meus amigos. Jogávamos à bola, passávamos o tempo na rua. Quando fui para a escola primária, fui em condições distintas dessas pessoas. Como era muito irrequieto, os meus pais fizeram um esforço adicional e puseram-me num pseudojardim infantil aos quatro anos. Era a casa da Dona Celeste, uma professora reformada que dava explicações na salinha de jantar. Quando fui para a primária, já sabia ler e escrever correctamente. Estes meus companheiros de rua tinham normalmente problemas de aprendizagem, agravados pelo alcoolismo dos pais, pela desestruturação da família; era eu que os ajudava nos trabalhos de casa. Alguns tinham mais dois, três anos do que eu e andavam na primeira classe. Estamos a falar de um tempo anterior ao 25 de Abril, os castigos corporais eram frequentes na escola. Por causa disso, desde pequeno, fiquei com um grupo de guarda-costas privativo! [riso]


O seu pai arranjou emprego na Carris. Fazia o quê?

Começou por ser guarda-freio, depois passou a cobrador, depois passou a motorista; fez toda a sua vida profissional, até se reformar, como motorista da Carris. A minha mãe era doméstica e simultaneamente fazia costura para fora. Éramos o que se pode definir como família de classe média-baixa. O meu pai ganhava 900 escudos por mês e pagávamos 513 de renda. É um valor que retenho porque a partir dos dez, 11 anos, era eu que ia à Caixa Geral de Depósitos depositar esse dinheiro todos os meses.


Era uma grande responsabilidade. Era mais de metade do que o seu pai ganhava. Tinha medo de o perder, de ser assaltado? Esses temores assaltavam-no?

Não. Para colmatar as nossas necessidades, o meu pai alugou um pedaço de terreno perto de casa e fez uma pequena horta. Cultivámos feijão verde, tomate, cebola, alho; todos os produtos hortícolas normais, para não termos de gastar dinheiro na praça. Quando tínhamos excesso de legumes, que não consumíamos inteiramente, vendíamos as sobras. Eu tinha seis, sete anos, e ia vender aos vizinhos. Achavam-me graça e eu tinha habilidade para falar com as pessoas. O dinheiro era muito esticado para que não chegássemos ao final do mês sem dinheiro.


Eram conversas que tinham consigo, que ouvia? Responsabilizavam-no?

Fui envolvido desde a mais tenra infância. Falávamos sobre o valor das coisas, o valor do trabalho, as contas da casa. Faziam-se malabarismos. Antes de o último tomar banho, desligava-se o gás para se gastar a água quente que estava ainda nos canos. Sempre me habituei a tomar duche muito rápido. O meu pai dizia que era por uma questão de robustez física que tomava banho de água fria (até morrer, nunca tomou banho de água quente); mas não acredito, acho que fazia isso para não gastar gás. E poupávamos imenso. Quando fui para a primeira classe, no primeiro dia, a minha mãe foi ter comigo ao recreio e levou-me um pacote de batatas fritas. Um luxo absoluto!


Esse gesto da sua mãe revela um cuidado consigo. Com o que é que acha que eles sonhavam?

Sonhavam dar-me a mim e aos meus irmãos uma vida melhor do que aquela que tinham. Cada um deles só estudou até à quarta classe. Esforçavam-me muito. O meu pai folgava um dia por semana, fazia muitas horas extraordinárias. Na minha primeira infância, passava os Verões em Cabanas com os meus avós. O meu avô paterno, António, tinha a alcunha de gajão; quando era novo, era bonito, imponente. O meu pai era o mais velho de seis irmãos. Os meus tios iam à guerra e os meus avós vestiam de preto - como se tivesse morrido alguém. Os meus avós estiveram de luto desde que o meu pai foi à tropa, em 1961, até ao 25 de Abril. A antecipar a morte de um filho, que felizmente nunca aconteceu.


O Verão na aldeia: tranquilo, com os meus avós, em casa, com o gado. Era uma vida muito pobre - digo: a pobreza do tempo de Salazar. Com pouco cash, mas razoável abundância de tudo. Os meus pais tinham falta de roupa e de sapatos, mas para comer havia sempre pão, carne. Nunca passei fome, nunca andei roto, nunca andei miserável.


Apesar de tudo, o quadro que descreve não é desesperado. O que é que o faz dar o salto, sentir a necessidade de que a sua vida fosse outra?

[Pausa] Não o consigo identificar. Há um fenómeno que é importante referir. Em 1969, morre uma irmã da minha mãe, que era muito próxima. A minha mãe ficou muito abalada. A forma de se recompor passou pelo encontro com as Testemunhas de Jeová. O meu pai continuou católico até ao fim da vida e sempre com mágoa por a minha mãe praticar uma religião diferente. Mas as meninas são dos pais e os meninos são das mães. Não tenho memórias de práticas religiosas que não sejam as das Testemunhas de Jeová.


O que é que aprendeu?

Coisas fabulosas. O código ético é muito apertado. É muito difícil convencê-la a ser Testemunha de Jeová, é preciso uma grande capacidade de convencimento, e para isso somos treinados desde que lá chegamos. O objectivo é que me torne um reprodutor dessa mensagem, um pregador dessa palavra e um angariador de mais Testemunhas de Jeová. Isto molda profundamente o meu carácter, e venho a aproveitá-lo em toda a minha vida.


Por que é que saiu?

Hormonas. Estive até aos 14 anos. Havia uma total proibição de relacionamento entre sexos. Mas, durante os anos em que estive, aprendi muito. Que o não é o princípio do sim. Que é preciso insistir e conseguir.


A sua relação com a sua mãe era a célula fundamental da sua vida. A passagem pelas Testemunhas de Jeová é expressão disso. Como era em casa?

Ajudo a minha mãe em casa, na costura, a passar a ferro, a tirar linhas. Era uma casa cheia. Todos os irmãos do meu pai passaram por nossa casa depois de regressarem da guerra. Ficaram seis meses, um ano, dois anos, até casarem. Posso dizer-lhe que nunca tive um quarto.


Quando é que teve o seu primeiro quarto?

Quando me casei. Até lá, dormia sempre na sala ou no divã. Nunca tive essa privacidade. Estava lá, por exemplo, o meu tio-padrinho, que hoje é meu sócio e por quem tenho um profundo carinho. O meu pai tentou metê-los a todos na Carris. Ele sentia essa preocupação em relação aos irmãos? Era o patriarca. Que é, no fundo, hoje o seu papel na família. Os amigos podemos escolher, a família é nossa. Se Deus me deu este dom e esta capacidade de me autodesenvolver, de construir alguma coisa, tenho esta responsabilidade perante a família.


Qual foi o primeiro dinheiro que ganhou?

Vou falar do primeiro negócio que fiz. Sempre gostei muito de ler e não tinha dinheiro para comprar livros. Só tinha livros emprestados. Os livros da escola primária que tinha eram livros de alguém que já tinha andado na escola primária. Usados, rabiscados, sujos. Em Odivelas, junto à paragem das camionetas, havia uma barraca-armário e um velhote que trocava livros. Deixávamos um livro, trazíamos outro. Um livro custava 25 tostões, pagávamos 10 tostões e trazíamos outro que ainda não tivéssemos lido. Na minha zona não havia nada igual. Então, aos dez anos, tinha uma valise de carton - do género Linda de Suza - com livros. Investia todo o dinheiro que me davam e que ganhava em livros. Passava duas horas por dia, entre as 17h e as 19h, na paragem do autocarro, a vender e a trocar livros. Foi esta a minha fonte de rendimento até ir para a Casa Pia.


Sempre sozinho. Contava consigo e partilhava o que vivia com a sua mãe?

Exactamente. O salto: em 1972, o meu pai conseguiu comprar um carro velho, uma Renault 4L castanha. Ainda me lembro da matrícula: DG/46 /26. Gostava de saber onde está esse carro...


Gostava de o ter?

Adorava! O meu pai vendeu-o quando tinha 16 anos, com grande pena minha.


Queria tê-lo por ter sido o primeiro carro da família, um símbolo de uma certa ascensão?

Seguramente. Dava-nos uma sensação de quase riqueza. Estávamos desenraizados. A nossa referência não era o sítio onde vivíamos. Era a aldeia; e na aldeia, estávamos claramente acima da média (porque os meus pais tinham comprado um apartamento próprio, um carro). Em relação ao bairro de barracas, passa-se a mesma coisa. O meu pai comprou o carro e no fim-de-semana fomos a Cabanas de Torres, trouxemos uma quantidade enorme de comida (couves, alfaces, coelhos, galinhas, carne já arranjada). A minha mãe pediu-me que levasse umas coisas ao meu tio, que morava na outra ponta de Odivelas. O meu tio dava-me sempre um dinheirito e naquele dia deu-me 25 tostões. Vim todo contente com a moeda branca no bolso, e na Rua da Memória vi uma pastelaria com uma montra cheia de bolos. Eu sabia que uma bola de Berlim, na padaria, custava 15 tostões. Tenho a cena como se fosse hoje, felliniana... Chego-me ao balcão com o meu metro e dez de altura, peço ao empregado: "Quero uma bola de Berlim, se faz favor." Um empregado vestido de branco, de lacinho. Vai ao armário, tira a bola de Berlim, mete em cima de um guardanapo, em cima de um prato, em cima do balcão. Estico-me e entrego os meus 25 tostões. Ele diz: "São três e quinhentos." "Obrigado, não tenho." Retirei a moeda, ele retirou o bolo, venho por aí fora. Penso muito, muito nessa bola de Berlim. Aliás, gosto pouco de bolos. Acho que tem a ver com isso.


Determinou que ia ser diferente?

Talvez o salto seja este. Sinto que tenho de ganhar dinheiro. Não vou passar a vida inteira a perguntar primeiro quanto é que as coisas custam, para saber se as posso comprar. Esta é a história da minha vida até aos 12, 13 anos.


Antes de avançarmos até à adolescência e à Casa Pia, conte-me de um brinquedo que tenha tido na infância.

No Natal, a Carris dava brinquedos aos filhos dos funcionários. Nesses brinquedos vinha um saco com balões. Eu gostava tanto de balões. Imaginei que se iriam romper e estragar, e por isso guardei um em cima do reposteiro. "Daqui a uns meses, quando não tiver mais brinquedos, brinco contigo." Mas, dali a uns meses, o balão estava completamente comido, provavelmente pelos bichos. Fez-me compreender que as coisas têm de ser vividas no dia-a-dia.


Este exercício que estamos a fazer, de olhar para o passado e perceber que marcas há dele na pessoa que é hoje, é uma coisa que faz amiúde?

Não o faço de forma tão sistematizada. Faço quando olho para as minhas filhas, e as vejo, como este fim-de-semana, a encher balões de água e a rebentá-los na piscina. Fiquei a pensar que tristeza seria se o visse na minha infância. Encher balões e rebentá-los de propósito era inconcebível.


Ainda demorou muito na sua vida até assistir a cenas dessas, na piscina? E a dar-se com ricos?

Muito tempo. Na minha infância só via ricos na televisão. Sempre estive integrado em grupos de pessoas do meu meio. Entretanto, a minha mãe ficou grávida da minha irmã, quando eu tinha 12 anos. Os meus pais tinham conseguido juntar algum dinheiro e começaram a construir uma casa na aldeia. Planeávamos inaugurá-la nas festas de Cabanas, no dia 3 de Setembro. No dia 2, a minha mãe, no fim do tempo, pôs-se em cima de um banco para limpar umas coisas; um banco de madeira, que se desmanchou todo. Caiu, destruiu o pé e o tornozelo, foi operada ainda antes de a minha irmã nascer. Esteve no hospital uns seis, sete meses. O meu irmão e eu ficámos sozinhos em casa, a minha irmã foi viver com uma tia. Estávamos em 1979, com uma inflação galopante. Por via desta falta da minha mãe em casa, da sua orientação, entrámos numa situação financeira crítica. O meu pai trabalhava incessantemente, 20 horas por dia, em grande desespero. Eu cozinhava, aguentava a casa, tomava conta do meu irmão. Chumbei o sétimo ano. Um dia disse ao meu pai: "Não vou estudar mais." O meu pai olhou-me profundamente; não me lembro onde foi a conversa, mas lembro-me do olhar dele. "Nem penses nisso, está fora de questão."


Foi o olhar da determinação e da autoridade?

Não foi um olhar autoritário. Foi o olhar de quem dizia que aquela seria a última opção.


"Tens de te salvar pelo estudo"?

Sim. "Tens de ser melhor."


A solução encontrada foi a Casa Pia?

Foi. O meu pai transportava todos os dias uma senhora que trabalhava na secretaria da Casa Pia. Inscreveu-me, em Outubro de 1980 entrei como externo. Acordava todos os dias às cinco da manhã e chegava a casa às oito, nove da noite. Ia de autocarro de Odivelas até Belém. Associado a isto, tenho uma história com este homem que moldou a minha vida.


O seu avô materno, cuja fotografia trouxe para perto de si durante a entrevista.

O meu avô Alfredo. Por causa dele, mudei de nome aos 14 anos. O meu nome é António Alfredo. Toda a gente me chamava António, Toninho, Tonho, Tó. Nessa altura em que vou para a Casa Pia, o meu avô chama-me à parte e dá-me 500 escudos para comprar os livros. O homem que está nesta fotografia não sabia ler nem escrever. Na aldeia, pobre, foi o primeiro a ter uma vaca para produzir e vender leite. Foi o primeiro a comprar sementes de couves e a semeá-las. A alcunha dele era o Moca das Couves. Até então, as pessoas comiam cardos. Criou oito filhos e trabalhou noite e dia a sua terra. Quando cheguei à Casa Pia, "como é que te chamas?". Fiquei Alfredo, nome com o qual me identificava. É um tributo ao meu avô, que mudou a minha vida. Sempre vestido de preto, punha o barrete ao domingo, escondia os cigarros Porto dentro. Ainda lhe fiz a barba algumas vezes antes de morrer - dava-me um prazer enorme.


Já tinha sucesso quando ele morreu? Em que fase da vida estava quando fez a barba ao seu avô?

O meu avô morreu no final de 1992. Já ganhava muito dinheiro.


Como foi a entrada na Casa Pia?

A Casa Pia é uma escola fantástica a quem devo uma grande parte do que sou hoje. Se tenho continuado no ensino normal, teria desistido no ano seguinte - não acabaria o 9.º ano. Ter-me-ia desestruturado. Não sei se estaria cá hoje. Não sei se me teria acontecido o que aconteceu a mais de metade dos meus amigos, que morreram por problemas relacionados com a toxicodependência; outros estão presos. Aquilo era francamente duro. Heroína, crack.


Nunca foi por aí?

Nunca. Fumei o meu primeiro charro aos 14 anos, na Casa Pia. Recusei as drogas duras porque representam a alienação do mundo real. E é no mundo real que quero estar. É no mundo real que tenho de lutar. Na Casa Pia encontrei um ambiente hostil. Trinta por cento dos que lá estavam eram brancos; os outros eram negros, mulatos, timorenses (estávamos no fim do processo de descolonização). Miúdos com muito ressentimento, raiva, dor. A hierarquia era vincada, dos mais velhos sobre os mais novos. Tinha 14 anos, consegui socializar bem. Até porque trazia esta esperteza de rua, este street smart, que aprendi com os meus amigos das barracas.


Queria licenciar-se, tirar um curso técnico para poder começar a trabalhar rapidamente? Qual é a opção?

Vou para os cursos técnico-profissionais. Serralharia, marcenaria, electricidade, electrónica. Fiz uma série de testes psicotécnicos e um preceptor, que estava a licenciar-se em Psicologia, o Silva, viu os meus exames e disse-me: "Tu não tens jeito para nada." Foi uma farpa que me espetaram. "Filho da puta, vou provar-te que estás enganado." Nunca mais vi o Silva. Deve ser, com certeza, um funcionário público medíocre. Era um autoritário estúpido, que batia nos miúdos por prazer. Dedico-lhe grande parte das minhas vitórias.


De cada vez que tem uma vitória continua a ouvir o Silva a dizer que não tem jeito para nada?

Não. Continuo a ouvir o Silva em cada momento de ameaça. Sempre que me sinto acossado, encostado ao canto. Nas vitórias, ouço os meus amigos e a minha família. Na luta, vou buscar a força ao que o Silva me disse. Como não tinha jeito para nada, durante o primeiro ano passei de oficina em oficina. O que eu queria era electrónica.


Por alguma razão especial?

Era o mais limpo. Era o mais intelectual. Era onde estavam os melhores. E era aquilo para que tinha mais jeito. Encontrei aí alguns dos meus mestres. Na mesma altura, comecei a trabalhar nas férias e aos fins-de-semana. Ajudava a montar equipamento de som em bailes dos Alunos de Apolo, na Feira Popular, nos Bombeiros Lisbonenses. Ganhava algum dinheiro para os cigarros. Um dos bailes era frequentado mais do que tudo por prostitutas e empregadas domésticas - as denominadas "sopeiras". Entre os meus 14 e 18 anos, só tive namoradas sopeiras.


Porque eram aquelas a que tinha acesso?

Não. Porque cozinhavam muito bem e estavam normalmente sozinhas em casa durante o dia. Como andava com o grupo de baile, encontrava muitas. Especializei-me...


Quantos anos esteve na Casa Pia?

Quatro. Não foi só o estar na Casa Pia, foi o sair da Casa Pia. Saí na primeira fornada de cursos técnico-profissionais e com oferta de três empregos. A RDP, a RTP e a Control Data. Um grande amigo, já falecido, o João Soares Louro, fez-me a oferta para trabalhar na RTP.


Um ex-casapiano, também.

Não há ex-casapianos. Um casapiano é um casapiano para sempre. Durante este processo Chernobil da Casa Pia, repugnante, todos foram apelidados de ex-casapianos... É-se aluno da Casa Pia quando se está lá. É-se um casapiano o resto da vida. É uma coisa que fica, como se nos acrescentassem um apelido. Serei um casapiano até morrer.


Como assistiu a todo o processo Casa Pia?

Uma instituição com mais de dois séculos, que deu a este país homens únicos, tem estado debaixo de fogo. O crime é hediondo. Durante os anos em que estive lá, apercebi-me de que existia prostituição juvenil. Que é uma coisa completamente diferente de pedofilia. Havia alguns rapazes, internos e externos, que apareciam bem vestidos, alguns compravam motos. Todos nós sabíamos de onde vinha esse dinheiro. "Iam aos paneleiros" - dizíamos. Prostituição. Como havia na tropa. Enquanto estive na Casa Pia, nunca me dei conta de nenhuma situação de pedofilia, com crianças. Nem depois, quando saí. (Fui responsável e presidente do Casa Pia [Atlético Clube]. Mantive uma relação próxima com os órgãos [sociais] da Casa Pia.) Teria sido o primeiro a revoltar-me.


Estava a contar que quando saiu da Casa Pia teve várias ofertas de trabalho.

Um outro casapiano, Jaime Ribeiro, convidou-me para a Control Data, em Palmela. Eu e os meus cinco colegas fomos todos. Sentimos que era ali que estava o futuro. Estamos a falar de uma fábrica de discos; um disco de 40 megabytes era maior do que uma máquina de lavar roupa de hoje em dia. A fábrica era subsidiada pela CIA (soube-o mais tarde), para travar a força dos vermelhos no concelho. Estive seis meses na fábrica de Palmela, ganhei muito, muito dinheiro.


Foi a primeira vez que teve um emprego que não era precário e onde ganhava bem?

Foi. Com 17 anos, a dias de completar 18, fiz um contrato para ganhar de base 75 contos por mês (375 euros). O meu pai ganhava 20 na Carris. No final de Junho, quando me pagaram o ordenado e o subsídio de férias, comprei uma moto. A partir do primeiro mês, tinha dinheiro a rodos. Na fábrica, éramos 70 homens e 700 mulheres; e tive na família em casa de quem aluguei um quarto, em Setúbal, uma segunda mãe e uma segunda família.


Nem aí sentiu que podia descarrilar?

Era a primeira folga, a primeira possibilidade de respirar fundo.


Senti um bocadinho. Aqueles meses foram o meu Woodstock. Ao fim de meio ano, fui convidado para vir para Lisboa. Uma proposta difícil de aceitar, mas que me motivou bastante. Era um estágio de um ano ao cabo do qual passaria a contrato. Ordenado: 25 contos(125 euros)por mês. Era especializado em discos e podia especializar-me em informática de uma forma geral. Aceito vir para Lisboa, volto para casa dos meus pais, fiquei a contrato. A vida corria-me muito bem.


Como é que fundou a Urbanos?

Senti, por via dos meus skills naturais, e daqueles que aprendi enquanto Testemunha de Jeová, que tinha skills comerciais e que estava a desperdiçá-los na Control Data. Queria crescer. No departamento comercial só podiam entrar licenciados. Estava liquidado. Estávamos em 1988/89, tinha acabado de me casar. Casei com 21 anos acabados de fazer, quando saí da tropa. Na tropa fui para um batalhão de transportes. Larguei os cento e tal contos que já ganhava por 1200 escudos por mês, para fazer o serviço militar obrigatório. Fui com uma raiva muito grande.


É a primeira vez que fala de raiva. Em todo este processo, e apesar das coisas por que passou, não disse nenhuma vez: "Fiquei enraivecido."

Para a tropa, fui realmente enraivecido.


Porque era um revés? Porque contrariava anos de ascensão?

Porque não fazia sentido. Dois terços dos mancebos eram dispensados de forma aleatória. Fui obrigado, não houve nada que pudesse fazer. Chorei dias seguidos. Mas quando saí da tropa trazia um know how precioso: como é que funciona uma frota de camiões, quais são os custos, onde é que se tira vantagem, como é que se faz uma mudança. Transportes e logística.


As bases para a empresa que veio a montar. Por isso a montou?

Em Portugal, não havia nenhuma empresa de logística especializada em transporte de tecnologia. Na Control Data, os meus colegas e eu estávamos qualificados para transportar os equipamentos, para abrir as caixas de madeira, passar cabos por baixo do chão. Era um trabalho que qualquer pessoa podia fazer desde que não estivesse bêbeda, mal apresentada, não cheirasse mal e tivesse a barba feita.


Como é que partiu para a constituição da empresa, com que dinheiro?

Comecei a estudar Gestão, fiz uma série de cursos e candidatei-me a um programa de apoio a jovens empresários. Uma verba de 20 mil contos a fundo perdido. As taxas de juro estavam quase a 20 por cento! Fui apresentar o meu projecto ao Palácio das Laranjeiras, num dia quente, em Julho de 1990. No fim, o meu interlocutor perguntou-me, en passant, se eu era filiado no PSD... Desisti dessa possibilidade. Falei com a minha mulher, mãe das minhas filhas mais velhas, e apostámos na Urbanos. Com os dois mil contos que tínhamos, comprámos uma carrinha. Envolvi a família: fiz um acordo com o meu pai e com o meu padrinho (o meu pai já estava reformado e o meu padrinho trabalhava por turnos). Dava 20 por cento a cada um se trabalhassem de borla durante um ano. Foi assim que começámos. A Paula em casa a tratar dos papéis, eu na Control Data, simultaneamente, e a conduzir à noite.


Correu bem desde sempre?

Não tínhamos custos além do gasóleo, e ao fim de um ano tínhamos cinco carros, sete ou oito empregados. Tínhamos uma série de serviços relacionados com a tecnologia, com a importação de bens perecíveis e o transporte de materiais francos que vinham do aeroporto ou do porto de Lisboa, tabaco e uísque para abastecer os navios que estavam a reparar na Setenave.


Montar a empresa de raiz, nessas circunstâncias, é um processo ousado. O que é que o fez confiar tanto em si?

O passado. O lado dinâmico, empreendedor e de vendedor vem da minha infância. Em Fevereiro de 1992, despedi-me. Deixei os 500 contos e o carro e vim ganhar 167 contos para a Urbanos. Era o necessário para pagar a prestação da casa, para vivermos com alguma qualidade. Arrisquei tudo e não estou nada arrependido. Passei seis anos consecutivos sem férias.


Por que é que quis arriscar tudo quando já estava numa situação confortável, com 500 contos e carro? Para quem vem de uma situação de carência como a sua, aquilo já era extraordinário. Mas não lhe bastava.

O problema era que aquilo era a prazo e não tinha perspectivas de crescimento. Já sabia que queria ser alguém. Queria que as minhas filhas tivessem uma vida diferente da minha. Queria viajar pelo mundo inteiro, ter acesso às coisas boas. Queria ter uma vida diferente daquela que tive até aos 14 anos.


Quando é que o dinheiro deixou de ser uma preocupação? Quando é que deixou de olhar para o lado direito do menu?

Quando me divorciei, pesava 118 quilos, trabalhava e fazia uma vida desregrada. Só nessa altura é que percebi que estava milionário. Entre 1991 e 1998, não tive a noção do património que estava a acumular. Estava preocupado em fazer mais, em fazer crescer a empresa, em contratar as melhores pessoas.


Mas ainda não estava a desfrutar?

Não, de forma nenhuma. Ofereço a mim próprio o meu primeiro presente no dia em que fiz 33 anos. Comprei um Mercedes descapotável, que ainda hoje tenho e que quero guardar como relíquia.


O primeiro brinquedo foi a moto.

Sim, mas este teve uma carga especial.


Porque era inimaginável?

Era a consumação de um facto, a consagração, o abrir da garrafa de champanhe. É a fase em que começo a desfrutar. Comecei a ir para a Quinta do Lago e para Vale de Lobos. Nesse ano conheci a Eugénia, com quem vivo e tenho uma filha.


Nunca teve complexos de nenhuma espécie? Nem quando o Silva lhe disse que não tinha jeito para nada. Nem quando nas Laranjeiras lhe perguntam se tinha cartão do partido e vê as portas fecharem-se.

Não tenho complexos de inferioridade. Parto de uma base muito baixa para um patamar simpático, onde estou, tanto profissional como económico e social. Em cada sítio onde chego, aprendo, adapto-me, não me sinto complexado. Uma vez ou outra senti-me rejeitado. Dói-me bastante, quando acho que o fazem, não por causa do meu valor, mas quando outros valores se levantam.


Nunca teve raiva de ricos?

Pelo contrário. Há duas atitudes possíveis. Ou estamos na paragem do autocarro a olhar para o tipo que passa no Mercedes e dizemos: "Um dia hei-de ser como tu"; ou olhamos para o tipo que passa no Mercedes e dizemos: "Filho da puta, um dia hás-de andar de autocarro como eu." Sempre usei a primeira fórmula. Esta é uma característica que o nosso povo tem. Apetece-me esganar os nove milhões e 800 mil que às vezes sentem isto. Nunca tive raiva aos ricos. Sempre disse que um dia seria como eles.


Mas nunca teve a subserviência que muitas vezes os pobres têm em relação aos ricos.

Não.


Começou a viajar quando? - era outro dos seus anseios.

A primeira vez que fui ao estrangeiro foi quando me casei, em lua-de-mel. Fui de carro a Paris no Renault 5 que tinha. Fiquei em casa de uns familiares, e depois em casa da madrinha da minha mulher, na Suíça. Fizemos um pequeno tour, dez ou 12 dias a ver o mundo e a ficar de boca aberta. A comer McDonalds, aquele sabor único que fica do primeiro que se come. Estive a fazer as contas: já visitei 64 países diferentes.


Durante muito tempo, só se deu com pessoas do seu meio. Quando é que os ricos passaram a ser pessoas com quem se cruza na rua, ao almoço?

Começo a relacionar-me com pessoas de um poder económico e de um mundo diferente do meu em 1996, a jogar golfe.


Percebeu que os negócios passavam pelo golfe?

Claramente. Tive sempre muitas ajudas. O meu grande segredo foi nunca desiludir as pessoas que apostaram em mim. Não são os "Silva" desta vida que me fizeram chegar onde cheguei; são aqueles que disseram que eu era capaz, que ia ser bem sucedido, aqueles que me deram oportunidade de fazer um negócio com responsabilidade. Os "Soares Louro" desta vida, os "Manuel Mateus" desta vida. Não podemos desiludir as pessoas que estão connosco, os nossos colaboradores. E nas bases é o mesmo processo: é fazer pequenos "Alfredos Casimiros". Pegar em ajudantes de mudanças e transformá-los em directores de unidades de negócio.


Este ano, a Urbanos foi considerada a melhor empresa para se trabalhar em Portugal. O segredo é dar a cada pessoa a noção de que pode progredir?

Para além das instalações, do salário, da água, da fruta, é a formação e a possibilidade de crescer dentro da organização. Oitenta por cento da nossa equipa comercial é constituída por pessoas que vieram de baixo. A empresa, culturalmente, está desenhada para motivar, apoiar e acarinhar os melhores membros dentro de cada área, sejam ajudantes ou motoristas.


Um caso que ilustre isso que diz.

O Bernardino Neves é um study case dentro da Urbanos. Foi para lá com 16 anos e o 2.º ano do ciclo, hoje tem o 12.º ano, está a fazer Gestão, é director de uma unidade de negócio, está a um passo de ser administrador do grupo. Encontro pessoas com um valor extraordinário, que vestem a camisola, que precisam da formação certa. E as pessoas sentem esperança.


Isso é uma necessidade de retribuição?

That"s business. Também tem a ver com retribuição, mas é um modelo de negócio. O meu negócio não é logística ou transportes, são as pessoas.


Trata assim as pessoas porque acha que é assim que profissionalmente a sua empresa pode crescer?

Exactamente, com o crescimento dessas mesmas pessoas. É isto que faz com que as pessoas dêem a sua last mile, aquela milha extra quando se corre a maratona, quando é preciso suar e ir buscar energias onde elas já não existem. Estão com esta motivação, este drive, porque têm os exemplos dos outros. E os exemplos são tudo, não podemos escrever por decreto e depois não dar o exemplo. Consegui fazer isto na Urbanos e noutros negócios em que tenho estado envolvido, numa série de empresas que comprei e vendi (foi também isso que me deu mais alguma folga económica). É aquela velha máxima de Sun Tzu: "Não existem maus soldados, existem maus generais."


Tem várias edições na estante de A Arte da Guerra, de Sun Tzu. Também tem pelo menos duas edições de O Príncipe, de Maquiavel.

Infelizmente não li a edição inglesa. O meu inglês não é suficientemente bom. Mas o das minhas filhas já é.


O golpe mais rude da sua vida foi a morte do seu irmão?

Foi. O meu irmão era um grande back up. A existência dele dava-me a possibilidade de estar fora o tempo que fosse necessário, sabendo que em termos profissionais e familiares estávamos à distância de um telefonema. Demorei muito tempo a processar a morte do meu irmão. Chorei nos primeiros cinco minutos, depois parei. Entrei num estado de semitranse em que a única preocupação era fazer controlo de danos na família, nos filhos dele, na minha mãe, fazer umas exéquias fúnebres dignas. Só ao fim de 12 dias é que consegui chorar. Fui a nova Iorque em trabalho, e no terceiro dia não saí do quarto; estive convulsivamente a chorar entre as sete da manhã e as seis da tarde. Tinha-me custado muito a morte do meu pai, mas era mais natural, embora tivesse apenas 61 anos. A morte de um irmão mais novo, um companheiro, um compincha...


Foi como se fosse uma parte de si?

Sim. Tinha 37 anos, foi um ataque cardíaco fulminante, um aneurisma. Fez-me pensar, e faz-me repensar, muito a vida.


É evidentemente uma dor imensa. Mas o que é que muda em si, em que é que muda a sua atitude?

O meu irmão vivo dava-me a garantia de poder fazer as asneiras que quisesse. Se me acontecesse alguma coisa, tinha alguém que trataria das coisas. O meu irmão morto obriga-me a ser muito mais conservador naquilo que faço, nas viagens, nos riscos que corro. Nos riscos financeiros também. Fiquei com uma grande responsabilidade às costas. Já era o patriarca, agora estou mais isolado e sozinho. Sinto um vazio muito grande dentro de mim.


Tem três filhas. Qual é a sua grande preocupação em relação a elas?

Quero mandá-las estudar nos melhores colégios, nas melhores universidades, licenciatura, master, o que quiserem. Quero dar-lhes uma ferramenta forte, prepará-las para o futuro. Para que possam ser elas a fazer a sua vida. Não quero correr o risco de, daqui a 30 ou 40 anos, estar às portas da morte e ter três filhas imbecis, à espera que o pai morra para meter a mão em 20 milhões ou 30 milhões de euros cada uma.


Elas sabem disso?

Têm a noção de que o pai não lhes vai deixar nada. Se as deixar bem financeiramente, vou tirar-lhes o prazer de vencer, de construir. Se amanhã se alavancarem no dinheiro do pai, não vão ter esse prazer. Vão ter o complexo de fazer mais ou melhor que o pai; ou então entregam-se à morte: "Vamos lá torrar o dinheiro que o pai nos deixa."


Quando diz que não lhes quer deixar nada, significa literalmente, nada, além da educação? É uma declaração retórica, tem planos em relação a isso?

Tenho. Estou a constituir uma fundação onde quero deixar parte considerável dos meus bens, e onde, naturalmente, se alguma coisa lhes acontecer, em termos de saúde ou incapacidade, tenham um apoio.


Mas "toma lá um milhão para começares a vida", isso não?

Não, definitivamente. Quero muito poder comprar o primeiro carro e a primeira casa e depois "faz-te à pista". O objectivo desta fundação é devolver à sociedade aquilo que ela fez por mim. Numa primeira fase quero que o projecto contribua para a formação de pessoas com valor que estão desaproveitadas, que as possa motivar e ajudar a encontrar aquilo que realmente querem fazer. Mais do que terem um canudo, um degree, ajudá-las a encontrar a vocação. E, simultaneamente, apoiar, em termos empresariais, micro e pequenos empresários. Pegar em empregados de longa duração, ou nos que estão desempregados aos 55 anos, que dificilmente vão voltar ao mercado de trabalho, que têm a ambição de ter o seu próprio negócio, e dar-lhes formação, ensinar gestão, tesouraria, a lidar com os impostos.


Só tem 43 anos, mas por ter começado tão cedo, e por ter tanto que contar, às vezes parece que estou a falar com um homem mais velho. Mesmo a propósito da fundação: é raro ouvir um jovem falar assim do seu futuro. Sente-se velho?

A fundação é uma ideia que venho a desenvolver há cinco ou seis anos. O falecimento repentino do meu irmão fez-me acelerar este processo e anunciá-lo publicamente. A morte dele fez-me perceber que não somos nada e que a qualquer momento desaparecemos. Isto faz com que fiquemos com um sentimento de maior maturidade, de envelhecimento precoce. Mas não me sinto nada velho. Sinto que mereço descansar um pouco mais.


O que é que ainda o faz correr? No começo da entrevista falou de necessidade e não de vontade.

É a competitividade, o vício de ganhar. Ganhar e construir coisas dá-me muito prazer. O dinheiro é importante, mas já não é só isso: é fazer, é ser o melhor, ter a melhor equipa.


Por que é que perto de si tem a fotografia do seu avô e o quadro do leão? Quis colocar-se estrategicamente nesta posição, de modo a poder vê-los.

É uma peça de um autor austríaco do século XIX. Foi a primeira extravagância, ou melhor, investimento, que fiz, em 1995, em Basileia. Revejo-me neste leão, nos finais de dia, quando chego a casa cansado depois de uma luta feroz. O meu avô, porque foi uma grande referência para mim. Ele e o meu padrinho são dois dos homens que, se tivessem sido apoiados pela fundação que quero constituir, teriam sido grandes homens. Gostava de contribuir para colmatar essas falhas e dar a essas pessoas com esse valor intrínseco, com garra e vontade, a oportunidade que tive, e que infelizmente poucas pessoas têm.


Entrevista publicada na revista Pública de 27 de Junho de 2010
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