No reino dos espectros

Se existe alguma marca distintiva na obra de João Mário Grilo, ela passa por um extremo rigor, uma quase ascética visão do plano, das movimentações de câmara, das motivações das personagens, dos objectivos finais da ficção construída.


Foi assim com a representação da História em "O Processo do Rei" (1990), em tom de quase reportagem, ou em "Os Olhos da Ásia" (1996), cristalizando o mito sacrificial. Foi também assim pelo modo como se interroga a dimensão política do país real em "O Fim do Mundo" (1992) ou "Longe da Vista" (1998). "A Falha" (2000) "falhara" o alvo, numa narrativa algo desconjuntada e, por isso, ansiava-se pela mais recente longa-metragem para nos restituir uma imagem mais condizente com a importância da sua radical diferença, no modo como percepciona Portugal e as suas contradições mais fundas.

"Duas Mulheres" não poderia começar de melhor forma: uma imagem a preto-e-branco, como se de um registo de tráfico se tratasse, imobiliza um carro na auto-estrada, acompanhando o genérico e abrindo para o confronto inicial entre as duas personagens femininas, em curioso duelo, marcado pelos silêncios e mistérios de uma hipótese de "thriller" psicanalítico.

Aliás, esta ideia do "thriller" vai aflorando ao longo de todo o filme, sem que se vislumbre uma opção clara, mesmo na inscrição (quase) final do crime, filmado, como sempre em Grilo, com uma secura que desarma e confunde. Nos muitos caminhos traçados, a sequência do jantar, formada por quatro casais geometricamente dispostos em redor da mesa, inscreve uma nova e importante pista de leitura: a grande finança e os seus jogos de mitigado poder, numa economia globalizada que serve de pano de fundo ao crescente romance entre as duas mulheres do título, uma psicanalista frustrada no casamento e uma modelo, fútil e insidiosa, dobrada de prostituta de luxo.

Por esta vertente sensual poderiam passar as regras organizadoras do melodrama, caso João Mário Grilo não optasse, de novo, pelo distanciamento e por uma espécie de frieza racionalizante, que reduz os encontros a resquícios desmembrados de mais um jogo de sedução, operado por mensagens crípticas de telemóvel e cruas exibições de nudez. Toda a estratégia do cineasta passa por evitar qualquer expressão do sentimento, com a possível excepção da visita à antiga casa da médica e da ida ao rio, mesmo assim filtrada por um estrito código de rigidez no olhar sobre os corpos. O que lhe interessa verdadeiramente é o vazio da inscrição social de personagens complexas, mas frígidas.

No centro de toda a dança de mortes anunciadas, está a força interpretativa da que é, porventura, a maior actriz portuguesa de cinema, Beatriz Batarda, contida numa interioridade feita de sorrisos e de pequenos gestos. Por ela passa tudo, o desejo controlado, a raiva surda, o retrato codificado de uma sociedade hipócrita e apodrecida, explodindo (um pouco) na belíssima sequência do aniversário do financeiro (Nicolau Breyner, mais uma vez a compor a personagem com enorme economia de meios expressivos), metonímia de um país em queda. Um dos mais belos planos do filme faz-se de fora para dentro da casa, com a câmara a fixar, entre anelas, uma festa de fantoches congelados no tempo, em volta de um bolo, cujas velas se apagam em triste anúncio de uma felicidade impossível.

João Mário Grilo filma sempre muito bem, com o tal rigor milimétrico que impede qualquer intervenção dos sentimentos, gelando tudo à passagem da câmara, fria como um bisturi que disseca o mundo que descreve: os corredores do hotel, a decoração medida dos interiores da casa do casal, o "court" de ténis fechado entre grades, tudo determina um território fantasmático, povoado por espectros disfarçados de gente. Falta carne e sangue às figuras que se deslocam como "zombies" por entre as ruínas de um mundo em que o sexo funciona como um ruído de corpos que se tocam sem se interpenetrarem. Mais uma vez por opção, a relação lésbica encontra-se condenada pela distância da câmara a um exercício de "voyeurismo" desgarrado e perturbante.

O final é bizarro, sem que se entenda muito bem a necessidade de o localizar num "longínquo" 2014, embora cumpra a função de mostrar o futuro igual ao presente (e ao passado), com as personagens executando os mesmos vazios rituais de sobrevivência social. Sem este epílogo "anti-trágico", o desmaio da protagonista perante o cadáver da "amante" de olhos abertos para o vazio correria o risco de adicionar um "pathos" que o realizador queria a todo o custo evitar. Faz falta este "pathos" que conferiria outra grandeza ao "romance"? Talvez, mas encaixaria num outro filme, uma espécie de "film noir" que apenas existe nas entrelinhas, embora pontue, aqui e ali, gestos e fragmentos de um cinema (demasiadamente?) autoconsciente.

O que faz a grandeza e o limite deste discurso descaradamente desconstrutivo passa, precisamente, por esta glacial postura de objecto "sem alma", reflexo de uma certa contemporaneidade e de um certo olhar desapiedado sobre o mundo. Como se queria demonstrar...

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