E então, apareceram estes rapazes Antonio e Miguel outra vez

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Antonio Tagliarini e Miguel Pereira regressam a casa, esse espaço construído a dois há dez anos - agora mais velhos, mais distanciados de si mesmos, menos preocupados com a identidade. Na Culturgest, voltam a responder pelo nome próprio, porque há coisas que só se dizem em conjunto

Diz-se que nunca devemos regressar aos sítios onde fomos felizes e, no entanto, dez anos depois, eis-nos de volta a um território híbrido, feito a partir dos corpos e das identidades de Miguel Pereira e Antonio Tagliarini, ambos coreógrafos e intérpretes. Corpos que, a 4 de Março de 2000, no pequeno auditório do Centro Cultural de Belém (Lisboa) marcaram, de um modo expressivo e inequívoco uma segunda fase na história recente da dança contemporânea em Portugal, depois da explosão ocorrida dez ou doze anos antes. "Antonio Miguel" prestava-se a múltiplas leituras, fruto da ambiguidade temática e figurativa que, desde 1989, distinguia a nova dança portuguesa das outras danças novas que despontavam em diferentes países da Europa.

Era, historicamente falando, um movimento que não se parecia com nada do que alguma vez se tinha passado na cena coreográfica nacional, que recusava uma etiquetagem simplista, cabendo na categoria dança mas saltando etapas de uma história contínua e mutante, porque não tinha havido uma verdadeira história da dança em Portugal.

Eram discursos que tratavam o corpo como um elemento na cena, em vez de um elemento ao serviço do efeito cénico e, sobretudo, eram discursos que tomavam a dianteira sobre um país imaginado por outros, acusado de ser feito de, e por, corpos que ainda carregavam o peso da religião, viviam a dispersão geográfica territorial - um país que já era Europa mas que ainda esta(va) por cumprir -, e anunciavam uma nova geografia disciplinar mas ainda não sabiam pronunciar o palavrão "multiculturalismo", mesmo que fosse implícita a sua relação com uma memória colectiva e, nos corpos, se sentisse essa herança.

E então, apareceram estes rapazes, não necessariamente adolescentes, mas com uma energia rara; não necessariamente originais, mas capazes de dominar as referências; não necessariamente conscientes do que estavam a fazer, mas apostados a viver as consequências desse acto fundador de uma outra forma de pensar o corpo nacional.

Hoje as coisas estão diferentes e talvez seja por isso que "Antonio Miguel" deixou de circular em 2006 - teve uma apresentação em Espanha no passado mês de Abril e estava programada para o festival Circular, em Setembro (entretanto suspenso por ausência de confirmação de pagamentos da parte da Direcção-geral das Artes) -, não entrou no reportório de nenhuma companhia e fixou o seu tempo de existência.

Diferentes, mais velhos, "com coisas para dizer", Antonio e Miguel regressaram a essa memória de "um encontro muito feliz, como uma história de amor que corre bem" (Pereira), encontraram uma memória com uma identidade própria. "A memória é uma coisa incrível. O teu corpo tem uma memória, mas o que o corpo devolve é uma memória alterada. Como é que trabalhamos isso?" pergunta o coreógrafo italiano (que vimos no Festival Alkantara, em Lisboa, com "Royal Dance" e que regressa a essa peça a 1 de Outubro na Guarda, no Festival Y, mostrando a 28 de Setembro, em Évora, no festival Escrita na Paisagem, "Rewind", a sua homenagem a "Café Muller", de Pina Bausch).

"Tínhamos uma dúvida, mas nunca foi intenção imitarmo-nos", acrescenta Miguel Pereira (recentemente visto, no Alkantara e em Coimbra, no elenco da última peça de Vera Mantero, "Vamos sentir falta de tudo aquilo de que não precisamos"). "Esta peça é mais sobre o tempo [que passou e este], as nossas diferenças, os encontros e desencontros [ao longo dos anos]. Ao olharmos para nós, hoje, perguntámos o que queríamos fazer, o que tínhamos para dizer, neste contexto, juntos", acrescenta.

Se há dez anos o foco estava no intérprete e nos mecanismos artificiais de construção de uma personalidade, hoje esse intérprete reflecte sobre o espaço que conquistou (e se o conquistou), sobre o corpo que cresceu e o corpo que tem de ser, em vez do que poderia ser.

Falamos de um intérprete, como se fosse apenas um, porque Miguel Pereira e Antonio Tagliarini fizeram de "Antonio Miguel" um "solo para dois" e fazem deste "Antonio e Miguel" - com acentuação no "e" e "na distância física que vai de um ao outro nome, de uma à outra identidade", reforça Pereira --, dois solos que não aceitam ser vistos em separado, mas antes ao mesmo tempo, como se fossem um só. Foi uma peça, e esta é-o ainda e também, que reflectiu sobre a alteridade e "como isso nos torna mais próximos", diz Tagliarini.

Eram precisos dois

De uma para a outra peça, houve elementos que ficaram, ou que resistiram ao tempo, e cuja presença agora respondeu a critérios, ao mesmo tempo, "de forma e essência", explica Miguel Pereira. "Regressámos ao que ainda tinha um sentido hoje, não um sentido veemente mas que produzisse um outro sentido, e que estabelecesse pontos de contacto [com a peça original]". Falam, ambos, de "uma dúvida" e de recuperar uma "semente que fica a germinar, de obsessões que continuam a reclamar atenção" (Tagliarini).

Se os movimentos que se repetem (as poses em cantor pop, os corpos deitados e encaixados na anatomia do outro, as "parvoíces [desses movimentos] sem significado", o diálogo com o público que não espera uma resposta) nos parecem deslocados, ultrapassados, artificiais, profundamente plásticos e falsos, isso é porque, no entendimento de Miguel Pereira "olhamos para trás e aquilo tudo nos parece difuso, até animalesco". Há, agora, uma deslocação do corpo em relação ao significado imediato num exercício de distância não apenas em relação à peça anterior, mas também numa tentativa de libertação desta nova peça de expectativas que advenham do desejo, exterior, de prolongar leituras que foram coladas a "Antonio Miguel" e que não estavam previstos.

A estética homoerótica a partir de corpos que, nus, encontravam no outro, não um espelho mas um complemento, uma distância em relação ao impacto provocado pela criação de significados a partir de imagens banais, uma rarefacção do movimento face à consciência do seu poder simbólico e, por isso, opressivo, são elementos que fizeram de "Antonio Miguel" um marco no percurso de ambos os criadores. Agora, naquilo que uma era metafórica, esta é uma peça anti-simbólica. "Nós, hoje, não fazemos parte de nada, não marcamos o que nos rodeia, mas somos marcados pelo que nos acontece."

 "Quisemos ser completamente despojados, sem máscaras ou armas, para falarmos de como nós mudámos e como o mundo mudou", diz Miguel Pereira. Fala-se de quem desapareceu, das guerras, dos prémios, das surpresas, do que correu bem e do que foi só uma promessa. É, também, uma peça-balanço de uma fase da vida, onde "a nossa vida já não somos só nós", feita por pessoas "mais velhas, mais despojadas", diz Tagliarini. "Sem a preocupação de dizer qualquer coisa de definitivo", acrescenta Pereira.

Nesse sentido, a ponte que existe entre os movimentos feitos hoje e a sua origem de há dez anos, não tem como objectivo a sua re-inscrição num território mais abstracto, menos seguro, mas "ver as coisas de uma outra perspectiva, não apenas política, mas social, no que isso tem de identificação pessoal". Essa ponte, esse caminho de um movimento ao outro - e de um tempo ao outro - é, para Miguel Pereira, "um canal de comunicação" que, sublinha Antonio Tagliarini, "chega agora mais limpo, menos ambicioso"."O que antes era existencial e individual, agora é visto de fora, nós já não somos importantes, ou isto já não é sobre nós", continua.

Miguel acrescenta que "Antonio Miguel" era sobre a procura de um espaço para o individuo e que agora esse indivíduo se dá conta de que já não tem mais espaço, "e se não tem, quem é e o que faz aqui, de onde vem, o que quer?", pergunta-se. O discurso hoje recupera determinados movimentos e reintegra-os numa leitura mais abrangente, tendencialmente mais pessimista sobre o real poder do indivíduo face ao que o rodeia. Eram precisos dois para isso, porque, e citando o título de uma peça de João Fiadeiro, também ela de 2000 e fundamental para essa mesma segunda vaga de reflexão sobre o lugar da dança nacional, "o que eu sou não fui sozinho".

T.B.C.

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