Nas ruínas de Chengdu

Jia Zhang-ke filma o irreversível - as mudanças na China - na certeza de que o irreversível dispensa comentários e juízos de valor

Agora que o poder - o económico, pelo menos - se vai lenta mas parece que firmemente trasladando para oriente, haveria muito boas razões para, e mesmo se não pelo cinema (sim, sim, é muito "parado"), se ir prestando atenção aos filmes de Jia Zhang-Ke. Eles são como "despachos", no sentido noticioso do termo (sendo que não se confundem seguramente com "despachos" da Xinhua), mostram-nos um bocadinho do que vai acontecendo "lá bas". "Lá bas", na sua China natal, que vai trocando (ou "adaptando") as suas raízes comunistas por uma nova e bem exibida condição de potentado capitalista à escala global.

Jia Zhang-Ke (que nasceu em 1970) tem sido um cronista desta transformação ou, melhor dizendo, dos efeitos, verificáveis no terreno, desta transformação. Uma China que se moderniza, que "racionaliza" a sua vocação camponesa e operária para se converter aos "serviços", e já não tem pruridos em - como se vê em "24 City" - fechar e demolir um parque industrial para no mesmo espaço fazer erguer um complexo de condomínios de luxo e hotéis de 5 estrelas. É esta China, ou o que desta China fica entalado no meio da "mudança de paradigma", que Jia Zhang-Ke vem contando há anos, como aos espectadores que viram "Plataforma" (desolado épico geracional que foi o primeiro Jia estreado em Portugal, e um dos "filmes da década"), "O Mundo" (sobre um parque temático nos arredores de Pequim que é a "globalização" em auto-paródia involuntária) ou "Still Life" (sobre uma cidade prestes a ser submergida pela construção de uma barragem) não é preciso explicar.

Em "24 City" a crónica de Jia chega-nos de Chengdu, cidade que durante décadas teve o seu coração numa unidade industrial dedicada ao fabrico de motores para os aviões da Força Aérea Chinesa. A fábrica foi desactivada, as instalações estão em demolição (no fim do filme já foram demolidas) e no lugar delas vai nascer um moderníssimo bairro habitacional a que chamam a "Cidade 24", a 24 City. É claro que, e pese toda a introdução acima, os adeptos do maniqueísmo bem explicadinho (comunismo = mau / capitalismo = bom - ou vice-versa) mais vale ficarem em casa a ler os cronistas dos jornais portugueses.

Jia não é mais crítico, ou mais entusiasta, de um "sistema" ou de outro, e não é de todo esse o plano do seu discurso ou do seu interesse. O que o motiva é a transformação, e ser testemunha do momento - curto, na grande escala das coisas - em que esses dois mundos ainda coexistem, numa expressão palpável e verificável de tudo aquilo em que chocam e se contradizem. Na verdade, e isto é nítido pelo menos desde "Still Life", Jia está para a China contemporânea como Tati esteve para o avanço da "urbanidade" sobre a "ruralidade" na França do pós-II guerra. Filma o irreversível, na certeza de que o irreversível dispensa comentários e juízos de valor. Se alguma coisa balança, é (como sempre) o coração: Jia está com os que ficam para trás, com os que trabalharam na fábrica, com os que acreditaram (mais ou menos) na retórica política e patriótica com que os educaram, e está com os filhos deles, os que já são doutro mundo e querem comprar apartamentos para os pais. Vemo-los e ouvimo-los, em relatos e depoimentos, reencontros (logo a abrir, entre dois antigos operários), passeios pela carcaça da fábrica de Chengdu, e curtos apontamentos ficcionais cuja natureza é não se distinguirem fundamentalmente das cenas propriamente documentais (é, digamos, a "mesma coisa", sem hierarquia de "verdades" ou "mentiras").

Há uma cena em que a câmara segue uma personagem no momento em que ela passa por dois jactos da Força Áerea Chinesa que agora, com as insígnias desbotadas, estão a ganhar pó antes de seguirem para a sucata - e esses dois jactos, que já foram certamente um "orgulho" e agora são dois trastes que para ali estão, exprimem maravilhosamente o sentido de perda (em toda a perda é o sentido que importa, não o que se perde) de que todo o filme se embebe, e que Jia incentiva recorrendo a intertítulos com fragmentos de poemas chineses (mais dois de Yeats) e a um manancial de belíssimas e muito melancólicas canções chinesas, quase sempre "lançadas" por uma passagem dalgum testemunho (quer dizer: a força das canções amplia-se porque a gente percebe a que ponto o seu poder evocativo é real e está incrustado nas vidas daquela gente). E também pensamos num filme português recente, que encontrava a sua maneira de filmar - com o mesmo sentido de perda - os despojos de um Portugal desaparecido sem dizer forçosamente que esse Portugal era melhor do que o que temos hoje: as "Ruínas" de Manuel Mozos.

Estas "ruínas" de Chengu vistas por Jia Zhang-Ke não serão o filme mais notável, ou mais importante, que o seu realizador já fez - não são uma "Plataforma", não são um "Still Life". Mas também já percebemos que Jia Zhang-Ke avança como um coleccionador, e que cada nova peça - cada novo filme, cada novo lugar - vale por si mas vale ainda mais pela amplitude que acrescenta à colecção. Evidentemente, é um filme a não perder.

Sugerir correcção
Comentar