Chega para fazer um Rohmer coreano?

Não custa entender as razões pelas quais a crítica ocidental insiste em aproximar o cineasta coreano de uma certa "Nouvelle Vague", sobretudo de Éric Rohmer: "Night and Day" (o título inglês que o tornou conhecido, talvez rimando com o facto de jogar com o dia em Paris ser noite em Seul) organiza-se em torno de um discurso culturalista, desde a presença algo obsessiva (mas unilateral) de um tema da Sétima Sinfonia de Beethoven, logo a partir do genérico; constrói uma estrutura romanesca, sob a forma de entradas de diário, entre princípios de Agosto e meados de Outubro; encena "jogos do amor e do acaso" (o encontro ocasional e inesperado do protagonista com uma antiga namorada que acaba por suicidar-se, conforme se lê no jornal coreano, mas também os seus romances inconsequentes com jovens compatriotas que estudam na escola de Belas Artes de Paris); insere, de modo bastante forçado diga-se, uma visita ao Museu d''Orsay, frente a um quadro de Gustave Courbet, o famoso nu feminino intitulado "A Origem do Mundo"; discute a loucura de Van Gogh; inclui duas visitas a Deauville, com emblemáticos (mas pouco "rohmerianos") passeios pela praia, consumo desordenado de ostras, passagem por cafés, esplanadas, pontes com (pouca) vista sobre a Cidade-Luz; parece comprazer-se numa deambulação sem sentido, nem tempo, ao sabor de improvisações amorosas.

Chega para "fazer" um Rohmer coreano? Vamos por partes: Sung-nam, um quarentão pintor de nuvens, exila-se em Paris por um breve período devido ao facto de ter consumido marijuana com um estudante americano e de recear a consequente prisão. Em França, hospeda-se numa pensão infecta, lê a Bíblia (não se sabe bem porquê), frequenta a comunidade coreana, faz o circuito das galerias de arte, apaixona-se por raparigas mais jovens, fala ao telefone com a mulher em conversas vazias e manifesta a sua incapacidade para integrar o espaço que habita. E aqui chegamos a um ponto fulcral: a essência do universo rohmeriano passa por uma espécie de ligeireza, de frivolidade séria, que não se inventa nem se improvisa, antes vem direitinha da tradição francesa da comédia de costumes, de uma descomplexada atitude comunicativa, sem medo de arriscar o lugar comum, a "conversa fiada", a banalidade genial, transformada, quantas vezes, em sinais de cultura de uma alta burguesia para quem viver o momento é como respirar.

E depois há a língua: as suas personagens também falam que se desunham, mas fazem do francês uma música surda, do trocadilho uma arte, da não comunicação um supremo jogo de cumplicidades, perdido (e ganho) no artifício da palavra certa, sem culpa nem tortura interior. Sem a "transparência" e a luminosidade do francês escandido na perfeição, não há Rohmer, como não há Marivaux, Musset ou Molière. Por isso não tomemos a nuvem por Juno: "Noite e Dia" terá com certeza os seus atractivos, mas fica a quilómetros-luz da medida inconstância rohmeriana.

Na sequência em que Sung-nam não consegue comprar um preservativo na farmácia, porque não fala francês, reside não apenas um limite ficcional, mas a evidência de que tudo está perdido na tradução (ou pela tradução): "Noite e Dia" é pesado, "gauche", denunciado, torturado, onde os contos morais ou proverbiais de Rohmer respiram (e transpiram) magistral leviandade. Por isso, talvez o momento-chave do filme passe pelo afrontamento de diferentes concepções políticas de base entre as duas Coreias, metaforizado no braço de ferro que os dois homens efectuam na esplanada parisiense. E o vaso que se quebra no final dá conta da fragilidade da ficção, empenhada em "tocar uma guitarra para a qual não tem (nem tinha que ter) unhas".

Dito isto, louve-se a capacidade para construir o drama a partir do vazio anedótico da fuga, o esforço de representar o fingimento como se fosse vida, a máscara do sonho sempre "perdida na tradução". Só que o tempo (quase duas horas e meia) pesa toneladas e este "conto de fim-de-Verão" regressa à base sem que tenhamos percebido muito bem porque viajou para uma Europa, de outras subtilezas feita.

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