A guerra de um país só

"Fantasia Lusitana" é a história da castração de um país a que, soterrado debaixo de tralha beata e saudosista, não foi concedida a possibilidade de se assumir

Entre a Civilização e o Mal, entre a Democracia e a Tirania, Portugal escolheu... a neutralidade. Sabemos, claro, que a história não foi assim tão simples, que nos bastidores o funambulismo (eventualmente brilhante) foi mais do que muito, que as necessidades de sobrevivência do regime não deixavam muitas opções, que a partir de certa altura a "neutralidade" foi mais uma "não-beligerância", o que não quer dizer exactamente o mesmo. Mas persistiu, durante e depois da II Guerra, o culto da neutralidade portuguesa ("escrupulosa e honrada", como se ouve no filme de João Canijo) enquanto virtude suprema, parte, ainda, de uma história de predestinação e privilégio.


Décadas depois, os mais novos ainda ouviam esta cantiga da boca dos mais velhos. E, comodamente nascidos décadas depois do conflito, embrenhados na leitura de histórias da II Guerra, desconhecedores das subtilezas da posição portuguesa na geo-estratégia da altura, impunha-se-lhes a questão moral que cobria a neutralidade com uma tonalidade ligeiramente abjecta: é que mesmo a escolha do Mal e da Tirania teria sido mais fácil de entender, ao menos tratar-se-ia de um compromisso claro.Não são outras as questões desta "Fantasia Lusitana" de João Canijo. A partir de imagens de arquivo, um retrato de Portugal durante a guerra, durante a neutralidade. Grandes e pequenas celebrações, um quotidiano mais ou menos extraordinário que se tentava manter tão... ordinário quanto fosse possível. Portugal como ilha, pedaço feito de ordem e calma, parêntesis num mundo a ferro e fogo. O trabalho de Canijo com o material que pesquisou nos arquivos é sobretudo uma bela operação de compilação, com o mérito de agir sobre os documentos - em grande maioria, documentos "oficiais", produzidos para filmes de actualidades, naturalmente com o alto patrocínio da propaganda de Estado - de maneira subtil, sem os forçar e sem os caricaturar. Porque, na verdade, já lá estava tudo: se o filme de Canijo tem um discurso sobre a neutralidade, suas razões e virtudes, esse discurso constrói-se a partir dos discursos da época, das justificações oficiais e providenciais, das loas a Carmona e a Salazar, da construção da ideia de uma neutralidade "merecida" (expressão que a locução de época refere insistentemente) que faz da II Guerra um castigo que outros povos, menos "merecedores", não souberam evitar. Tudo isso está lá, na origem, mais aquilo que sempre espanta nos noticiários e actualidades portuguesas do tempo da guerra: a indiferença descomprometida, a alegria esforçada, a entropia isolacionista, a fantasia (lusitana) da predestinação.

Como boa compilação, "Fantasia Lusitana" condensa os traços essenciais do ideário da neutralidade com que Portugal cruzou a II Guerra. Onde o filme ganha outra densidade e, digamos, se sedimenta, é na inclusão de uma espécie de contracampo para estas imagens - o olhar dos estrangeiros, dos estrangeiros que por Lisboa deambularam à espera de um barco para os EUA. Alfred Döblin, Erika Mann (a filha de Thomas) e Antoine de Saint-Exupéry: o que escreveram sobre a sua permanência em Portugal, dito em "off" na língua original (o único comentário falado que o filme acrescenta à locução de época) vem agir sobre as imagens, criar-lhes um negativo, desmontar a alegria postiça. São relatos de um país estranho, povoado por gente estranha. Todos falam de uma espécie de tristeza pouco condicente com a gratidão pela neutralidade. Erika Mann (cujo texto é dito por Hanna Schygulla) nota que em Londres as pessoas lhe pareceram mais alegres do que em Lisboa, e no entanto as pessoas de Londres viviam debaixo do "blitz". Mas as pessoas de Londres, conclui ela sem verdadeiramente precisar de o fazer, extraíam a sua alegria de se saberem envolvidas num combate pela justiça. A neutralidade poupa sofrimento, mas castra. "Fantasia Lusitana" também é a história desta castração, e de um país a que, soterrado debaixo de tralha beata e saudosista (a Exposição do Mundo Português, Fátima, o folclore), não foi concedida a possibilidade de se assumir. Dir-se-ia que o regime tinha perfeita noção disto: entre as últimas imagens mostra-se uma qualquer cerimónia de agradecimento, já depois de terminada a guerra, e a locução, levemente invejosa dos "V-days" de outros países, salienta: "não tivemos um dia V, mas tivemos um dia S". S de Salazar, claro. Valha-nos isso. Travámos a guerra sozinhos, sem verdadeiramente entrar em guerra alguma. Mais extraordinário, ganhámo-la. Derradeira fantasia.

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