Uma razão para amar Portugal

Assentem ouvidos em "La galhina", oitava faixa de "Senhor Galandum", terceiro disco dos Galandum Galundaina: uma velhota começa a cantar "a capella", depois há uma sanfona em fundo, entram as gaitas e o timbre das gaitas e a escala remetem-nos de imediato para o mundo árabe.

Quando surgem as flautas, com o seu som sem bandeira, o contraste tímbrico entre os três elementos deixa-nos à toa: de onde vem esta música? Um minuto depois um coro dos putos entra e esta sageza na escolha de instrumentos, vozes e do momento em que cada elemento da canção surge, esta geometria exacta conduz à comoção. Isto não é apenas uma canção, é um país, de raízes incógnitas a empernar umas nas outras e pelo futuro adentro, até revelar as nossas entranhas. E ainda assim é exemplo escasso da grandeza de "Senhor Galandum": ao contrário de "Modas i Anzonas", o extraordinário álbum anterior do quarteto, o disco não é uma elegia à gaita.

Em vez da força primitiva que conduzia esse disco, o novo abre a paleta e deixa outros actores tomar o papel principal: a sanfona e a rabeca sobem à boca de cena providenciando uma maior densidade sónica; há uma expansão da riqueza harmónica como resultado da aposta em "canções-canções", daí saltando para primeiro plano as melodias: e a variedade percutiva é ainda maior, ao ponto de em "Cabalheiralgo", com uma simples mudança de padrão, se assentar em territórios próximos do samba. O que aqui temos é o maior mapa sem margens nem coordenadas do folclore português feito em muitos anos - e é aqui que o disco se torna maior: nessa palavra, "português". Uma boa parte destes instrumentos não são "strictu facto" portugueses. As melodias não nos pertencem por completo. As harmonias idem. Damos por nós a perguntar "Que país é este?" ao ouvir "Coquelhada marralheira", com Sérgio Godinho como convidado: é matéria de gaitas, flautas, extraordinária percussão e melodia lindíssima, mas atentem na letra pícara: a história de um padre que bebia muito enquanto o povo morria à fome e não quis ser enterrado na vala, mas sim no carreiro do cemitério para depois de morto poder mirar o entre-saias das mulheres. E é isto que faz de "Senhor Galandum" uma obra-prima para lá da imensa paleta de géneros abordados, ou de uma eventual recuperação de umas quaisquer sebastiânicas origens: é que aqui está um povo tal como ele é e não como a burguesia gostaria que fosse: pícara, suja, sem pudores, com palavrões e miséria, o povo sujo que a elite detesta ou gosta de fingir gostar (lá longe). "Senhor Galandum" oferece-nos uma dezena de melodias espantosas e um assombro de ritmos e polifonias. No país dos Gaiteiros de Lisboa, de Amélia Muge, de JP Simões, dos Buraka, de Samuel Úria, enfim, no país que se queixa de si mesmo enquanto fecha os olhos a tudo o que fale português, sabemos o que acontece a discos assim: não vai ser ouvido por ninguém. E isso, sim, é censura, a pior delas: a estupidez.

Galandum Galundaina
Sugerir correcção
Comentar