Sem sombra

Um acontecimento: Lourdes Castro e Manuel Zimbro em Serralves

Issa Kobayashi (1763-1828) - sacerdote leigo de uma das escolas do budismo Terra Pura, desenvolvida no Japão a partir do século XIII - escreveu um haiku que Lourdes Castro (1930, Funchal) gosta de citar na sua versão francesa: Neste mundo/ caminhamos no telhado do inferno/ e olhamos as flores." O curto verso ajuda não só a entender a realidade na sua dimensão absoluta, sem separação entre opostos, mas também a perceber a coexistência desses limites em nós próprios. Num outro texto, também presente no quotidiano da artista, o "Sutra do Coração", uma outra ideia é formulada: "(...) tudo, todos os fenómenos, têm por natureza o vazio; não são produzidos nem destruídos, nem impuros nem imaculados, nem crescentes nem decrescentes."

A sombra e a luz. Assim se designam Lourdes Castro e Manuel Zimbro (1944-2003), aos quais Serralves dedica uma exposição antológica. Ao percorrer as salas do museu, e embora os trabalhos de cada um sejam, quase sem excepções, apresentados em salas separadas, não se pode deixar de perceber o quanto eles se unem: uma linha sem interrupções, participada por outros nomes - Pedro Morais, que também assina o projecto de arquitectura da mostra; Francisco Tropa, com quem a artista concebeu "Peça" (1998), uma obra sobre o nada; René Bertholo, com quem se iniciou a aventura da revista KWY (1958-1963).

O princípio da exposição é também o seu fim. Tudo começa e acaba no exterior do museu. Uma árvore é iluminada por dois projectores de modo a formar uma dupla sombra numa parede do auditório, que assume a função de ecrã. O movimento das folhas e dos ramos torna-se imaterial, sublinhando assim uma existência para além da presença próxima da planta: o positivo e o negativo de uma realidade impermanente. Este trabalho, "Sombra projectada de Adelina 'Magnolia Grandiflora' [Magnólia-de-flores-grandes]", datado de 5 de Março de 2010, prolonga os projectos relacionados com o "Teatro de Sombras", iniciado por Lourdes Castro em meados nos anos 60. No dia seguinte à inauguração da mostra, a tabela da obra tinha desaparecido: efémera como o tempo da exposição, visível sobretudo depois do cair da noite, ou seja, após o fecho das salas do museu, esta peça fala-nos também de vazio, desse fazer nada a que a artista se tem dedicado sobretudo na última década.

Sem sombra: a exposição é um contínuo. Dos anos 50 até hoje. Um catálogo sem interrupções. Um caminho aberto na direcção do nada: um lençol por bordar em cima de uma mesa iluminada, quatro anos de linhas pedidas a uma bordadeira, um calhau vazio, as sombras de uma árvore. Uma progressão de encontro ao imaterial: "O ser humano, o artista, a obra, são um só. A arte da obra interior, que não se separa do artista como a exterior, e que ele não pode fazer, mas apenas ser, nasce de profundezas que o dia desconhece", escreve Eugen Herrigel em "Zen e a arte do tiro com arco", livro publicado em 1948 [existem duas versões em português, editadas respectivamente pela Via Optima, Porto, 1987 e Assírio & Alvim, Lisboa, 1997]. Uma arte sem arte, o permanente exercício de Lourdes Castro.

Sintonizada com uma época, os anos 60, e com uma prática, a desmaterialização do objecto artístico, a artista é produtora de obras que, desde então, foram criando diversos tipos de deslocamentos: a influência inicial da americana Louise Nevelson (1899-1988), particularmente evidente nos objectos prateados - "assemblages" com uma composição plástica sedutora, característica sempre presente nas obras de Lourdes Castro -, vai progressivamente desaparecendo, ganhando então visibilidade uma série trabalhos centrados numa pesquisa em torno da ideia de sombra, a qual será declinada em diversos projectos, uns mais coloridos - dir-se-iam pop, de acordo com o espírito da época da sua produção -, outros mais próximos de um esvaziamento das identidades, uma forma de trazer à luz a informação contida em cada postura adoptada pelos retratados, de pé, sentados ou deitados.

Uma exposição a dois, esta "À luz da sombra", comissariada por João Fernandes. Quase nada: tudo. "(...) surgir, incorporado ou transformado/ como tudo -/ com desconhecidas flores vazias", diz o mestre zen Hôgen Yamahata num dos seus textos. Loures Castro e Manuel Zimbro: uma botânica, uma mineralogia. Um jardim de pedras. Não é possível separar. Há ainda os amigos: os pés e pernas recortadas em plexiglas azul, sobre as nossas cabeças. As sombras na parede ou sobre a tela. Tudo está no seu sítio, transparente: o herbário num corredor; os lençóis suspensos ou, em estrados, a dormir. Não é necessária uma cronologia: é como uma peça sem intervalo, uma sucessão de sombras e iluminações. Pode falar-se igualmente de jardinagem a propósito da exposição: tantas as flores - existe mesmo um regador para alimentar a imaginação.

"'Trata o Vazio até ao fim' é o que a Sombra da Lourdes lhe poderia ter aconselhado a fazer... quero dizer, não fazer; ou, caso o fizesse, o vazio teria ficado cheio." Palavras de Manuel Zimbro, que, um dia, olhou para as sementes que viajavam pelo ar e as tornou desenho e escultura em uma "História secreta da aviação", que continua a ser o exemplo da necessária atenção perante um quotidiano assombroso, impermanente, como a sombra de uma árvore projectada numa parede.

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