O mau gosto reina

"Anticristo" não é um filme feito para se ver, é um filme feito para se falar sobre ele. Oferece a cana, o anzol e o isco: tem imenso para "interpretar", fará furor em sessões com "debate".

Os filmes - certos filmes, como o "Anticristo" - chegam às salas cada vez mais "cheios", saturados pelas ideias feitas postas a correr sobre eles, e reproduzidas ad nauseam pela Internet fora. Até o mais vacinado acaba por se deixar convencer. Sobre "Anticristo", tanta cantilena se lê sobre a sua "beleza visual" (ou coisa que o valha) que se chega a considerar essa possibilidade. O choque é mais violento assim. "Beleza visual"? Aonde? Naquele prólogo obsceno, com lógica de vídeo-clip (para uma canção de Händel, ah bom, coisa séria) e visual de spot publicitário, que liga um grande plano do "diálogo" dos órgãos genitais do casal protagonista (Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg, aí convenientemente substituídos por próteses e "body doubles") à morte de uma criança, tudo ao "ralenti"? Na natureza (as florestas) dos capítulos intermédios, onde von Trier pretende (ver dedicatória nos créditos finais) pagar uma "dívida" qualquer a Tarkovski, sem perceber (ou percebendo muito bem) que aquela fotografia delambida (o operador foi o mesmo do "Slumdog", chama-se Anthony Dod Mantle, benza-o Deus) está para Tarkovski (e para Sokurov, e para os caspardavidfriedrichianos e outros adeptos da natureza nórdica em geral) como um autêntico "anticristo"? Não é o caos que reina, como diz o título de um dos capítulos, é o mau gosto, puro e simples, ou pior, estilizado e rebuscado. O feio pode ser tão belo como o belo, e o que von Trier quer mostrar (?) é que o belo contém o feio (como a corça com o feto morto pendurado), mas o que se vê é o enjoo do feio embelezado. Tanto pior se é preciso explicar melhor.


Os fantasmas nórdicos acumulam-se (acotovelam-se) em "Anticristo", cinema, teatro, e "temas" (o sexo, o casal). Longa sessão terapêutica de um casal - refugiado no "Éden", claro - para tentar distinguir a sexualidade da culpabilidade que no prólogo lhe foi associada (por negligência "orgástica", digamos), "Anticristo" vive de psicoterapia sobre-explicada, diálogos cheios de retórica (profundamente maçadores) e cenas de sexo agressivo. Começa como Bergman, aproxima-se de Cassavetes, rouba ideias (a bruxaria ligada ao desejo feminino) a um velho filme dinamarquês (o sublime "A Feitiçaria Através dos Tempos", de Benjamin Christensen, que von Trier obviamente conhece), acaba à tesourada tipo Oshima. Pena já não estarmos em 1975. "Anticristo" não é um filme feito para se ver, é um filme feito para se falar sobre ele. Oferece a cana, o anzol e o isco: tem imenso para "interpretar", fará furor em sessões com "debate".

Sugerir correcção
Comentar