Cinzentas bodas de sangue

A passagem de um actor para o outro lado das câmaras é uma tentação cujos resultados nem sempre correspondem ao carisma evidenciado em filmes de outrem. O caso de Fanny Ardant, com carreira prestigiosa desde os tempos em que funcionou como musa das últimas obras de François Truffaut até à participação bastante criteriosa em películas internacionais, não constitui excepção: "Cinzas e Sangue" parece revestir-se de uma certa força trágica, revelando cicatrizes abertas na memória colectiva de uma sociedade ancestral, dá boas indicações quanto à construção de personagens, sobretudo no início, mas não supera os "vícios" de uma primeira obra - o querer falar de tudo, uma ambição desmedida de ritualizar gestos e relações, sem domínio da linguagem, que corresponde à intensidade anímica do projecto, nem da montagem, confusa e aleatória.


Até existe, por vezes, nesta história de vingança e morte uma interessante vontade de construir uma dimensão operática, que confere relativa força a um argumento recheado de boas intenções, embora mal construído e com diálogos inacreditáveis: uma viúva que escapara à terra dos seus antepassados, algures nos Balcãs (o filme foi rodado na Transilvânia, mas parte de um romance de Ismael Kadaré, ambientado na sua Albânia natal), na companhia dos três filhos, regressa dez anos depois para um casamento de família e vê-se confrontada com todo o tipo de animosidades, acabando por sossobrar a um ambiente hostil que desencadeia a "tragédia" no meio de um conflito pela terra e pelo direito à "vendetta".No entanto, com orçamento reduzido, numa produção de Paulo Branco, a actriz-realizadora debate-se com inúmeros problemas resultantes da inexperiência, mas também do facto de contar com elevado número de personagens, cenas de acção com lobos e cavalos, tudo a escapar-lhe por entre os dedos, sem conseguir soluções satisfatórias para evitar uma sensação de involuntário improviso e de desconchavo narrativo.

Se a paisagem desolada ainda funciona, graças ao atmosférico trabalho fotográfico de Gerard De Battista, toda a guerra de clãs soa a falso. Os actores desconhecidos bem se esforçam por "fazer das tripas coração", mas aparecem perdidos numa ficção de que não entendem bem as implicações, como estátuas hirtas e impotentes ou, no caso da protagonista, a israelita, Ronit Elkabetz, a adoptar um "overacting" insuportável. O facto de Ardant ter optado por um não-tempo e não-espaço também ajuda pouco: nem realista, nem mítico, o filme arrasta-se numa lentidão sem sentido, entre olhares vazios e figuras de negro vestidas, a fingir um "Lorca balcânico" (tragédia grega nem sonhar) com mais sinais exteriores do que nervo.

Preferimos a Fanny Ardant, ardente actriz de outras "aventuras" mais afortunadas.

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