Duzentos anos de rock nas barbas dos Endless Boogie

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Somadas as idades de Top Dollar, The Governor, Grease Control e Memories From Reno, aproximamo-nos dos 200 anos

Os Endless Boogie formaram-se em 1997 e foram durante muitos anos uma banda reticente. Os poucos que os conheciam consideravam-nos um achado que urgia partilhar com o mundo. Quando dizemos poucos, não pensamos nos poucos que uma banda obscura reúne num par de meses numa conta MySpace, mas dos que lhes apareciam sala de ensaios dentro ou que conseguiam pôr as mãos numa cassete com uma gravação. Esses, dizíamos, ouviam ali um interminável fluxo rock'n'roll, com John Lee Hooker como figura tutelar (o nome da banda é retirado do álbum de 1971 do mítico bluesman), uma secção rítmica operária, infatigável, e guitarras encaminhando-se até ao infinito. Tudo muito bonito - mas eles, muito simplesmente, não estavam interessados.

Podem ter começado como qualquer banda de garagem adolescente: um grupo de amigos que queria tocar, um espaço disponível para ensaiar. O pormenor é que os Endless Boogie não eram adolescentes. Somadas as idades de Top Dollar, The Governor, Grease Control e Memories From Reno (sim, não há cá nomes reais, só pseudónimos), aproximamo-nos heroicamente de uma quantia a rondar as duas centenas. Formados por três funcionários da editora Matador e um coleccionador profissional de vinil, isto era pessoal que não tinha sonhos de grandeza. O "boogie" estava na garagem e, por eles, na garagem ficaria.

Mas os poucos que os conheciam insistiram e um deles apresentou um argumento de peso. Nome: Stephen Malkmus, mestre rock'n'roll nos Pavement. Em 2001, quando se estreou a solo, sabia perfeitamente quem queria a assegurar as primeiras partes da digressão subsequente. Endless Boogie, insistiu ele. Com um pedido destes, como resistir? Não houve escapatória. Na sala de ensaios nova-iorquina, perguntaram uns aos outros: "Como é que vamos fazer isto?". A resposta surgiu rápida, óbvia. "Não pensamos. Fazemos simplesmente. Aparecemos e tocamos as canções??, recorda desde Nova Iorque Top Dollar. É ele o coleccionador profissional (diz-se que o mais famoso da Costa Leste americana), e "fazemo-lo simplesmente, aparecemos e tocamos as canções" é aquilo que os Endless Boogie têm feito até hoje - ao vivo e, arriscamos, no único longa duração que editaram até ao momento.

Intitulado "Focus Level", surgiu em 2008 e começou a ser distribuído há alguns meses em Portugal. 79 minutos de "boogie" tão inspirado quanto alucinado, credível se nos garantissem ser obra de uma banda obscura do Nebraska, ano 1972, credibilíssimo neste 2009 de Comets On Fire ou Wooden Shjips.

No princípio  eram as guitarras

Top Dollar é, genericamente, o maior. Não só pelos solos monumentais de fuzz e wah-wah, não só por cantar como um Captain Beefheart sem plano fonético a cumprir - ou "em registo 'spoken-word' de maluquinho da rua", como era sabiamente descrito no blogue da loja e distribuidora Flur. Top Dollar, Paul Major no mundo civil, é o tio que qualquer adolescente de bom gosto desejaria ter, é um homem que adoraríamos encontrar atrás do balcão de uma discoteca bem apetrechada. Atende-nos o telefone e, pouco depois, está a falar-nos de raridades do psicadelismo e de como são cada vez mais difíceis de obter. "O garage-rock do período psicadélico já foi tão explorado por várias gerações que é difícil encontrar grandes tesouros". Nos anos 80, Major passava por uma epifania em regime semanal. Actualmente, "temos sorte se as tivermos uma vez por ano." Solta uma gargalhada: "O filão está tão explorado que há tipos a colocar discos de jazz locais, editados nos anos 1960, na prateleira 'psicadelismo'".

Paul Major, cinquentão cool, tem uma óptima história para contar. Imaginamo-lo, há décadas, como um romântico "freakzinho" dos discos, indiferente àquilo que deveria ser feito para, expressão feia, "construir uma carreira". Se não vejamos. Começou a tocar nos anos 1970, quando vivia em St. Louis. À sua volta, andava tudo entusiasmado com ácidos e com os Grateful Dead. Ele preferia ouvir os Beatles e os Kinks e estava numa banda chamada Moby Dogs: "Éramos um duo acid-folk e fazíamos versões dos Stooges e dos Velvets". Mais à frente na década, mudou-se para Los Angeles e, depois, com a boa nova do punk de Ramones, de Patti Smith ou dos Television, para Nova Iorque. Chegou atrasado: "os Television e os outros já estavam a fazer digressões nacionais, mas ainda deu para umas jams com o Johnny Thunders". Era uma banda a contracorrente: "Chamávamo-nos Sorcerers e éramos muito influenciados pelos Hawkwind". Ou seja, encaixavam na cena por uma simples razão, a mais antiga de todas: "Éramos uma banda de guitarras e isso era suficiente".

Depois dos Sorcerers, deixou de tocar durante vários anos. Quando, em 1997, redescobriu um velho amigo com um óptimo espaço para ensaiar, não havia grandes objectivos a cumprir. "Púnhamos a cassete a gravar e 'jamávamos'". Isto, até Stephen Malkmus se lhes atravessar no caminho e eles darem o primeiro concerto.
Nessa altura, não subiam a um palco mais do que uma dezena de vezes por ano - e, fora de Nova Iorque, só em cidades dela perto o suficiente para poderem regressar no mesmo dia. Agora, já percorreram vários estados americanos, já participam em festivais na Europa, até já têm um álbum distribuído no mundo inteiro. Processo de gravação: "Montámo-lo a partir das cassetes dos ensaios. Cinco horas de gravações. Pegávamos num riff e víamos até onde o conseguíamos levar".

"Focus Level" é um diamante rock'n'roll por polir, como o devem ser os diamantes rock'n'roll. Daqui a umas décadas, talvez o encontremos perdido numa velha e poeirenta loja de discos. Secção de jazz.

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