Nem Lhe Tocava

Foto

Por tudo o que Samuel Úria foi lançando ao longo de anos em edições obscuras, CD-Rs e compilações, por tudo o que se lhe foi vendo em vídeos no YouTube ou ao vivo, o seu disco oficial de estreia tornou-se uma das peças mais aguardadas de 2009.

Ele tem consciência disso - não é por acaso que começa "Nem Lhe Tocava" com uma longa faixa solitária à guitarra acústica em que anuncia que "se isto fosse fácil eu não o fazia", enquanto a guitarra faz uma descida perfeita, e depois remata "se fosse difícil nem lhe tocava". A faixa, homónima ao disco, é um epitáfio prévio: fala no privilégio de "ter um disco falhado", ou de dar "alguns meios tons ao lado", anunciando que "não há maior risco que ser antecipado". E para acabar Úria define-se como um "beirão no Chiado" e prevê vir a "ser meia estrela em crise". Admira-se a lata e a canção, sendo que até aqui isto é a essência do que conhecíamos a Úria: guitarrista de eleição, de voz colocada mas expressiva e senhor de pena laminar. Mas daí para a frente ele empenha-se em desiludir quem esperava um disco de baladeiro, chegando mesmo a dizer "Não sou eu sou baladeiro" em "Fel", um honky-tonk à Hank Willliams, com solo de duas notas, órgão Hammond e coros. Em "Não arrastes o meu caixão" transforma-se num Nick Cave do tango, na extraordinária "Teimoso" ensaia um falsete à Prince com catarro, enquanto anuncia "Eu nunca fui do prog-rock" por entre solos glam-soul e delírios de órgão à Booker T. "No Cover" volta ao tango, com acordeão e imitação de Vitorino, enquanto em "Lamentação" vai ao western, incluindo mesmo uma parte de sedução falada à Elvis. E ainda tem tempo para o gospel, na lindíssima e comovente "Império". Não é um disco de baladeiro, é disco de quem ouviu tudo e não quer ser encalacrado num canto, preferindo disparar para todos os lados. E o melhor de tudo: acerta sempre.

Sugerir correcção
Comentar