Um país também se reinventa assim

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Nem São Paulo nem Rio: Belo Horizonte. E no Inhotim não parece haver limites: tudo é improvável, grande, desmedido. Matthew Barney tem razão: "Não há muitas oportunidades destas".

A dada altura, entre o estalar dos "flashes" e o burburinho da multidão, uma muralha de câmaras e microfones fecha-se sobre o rosto do mais enigmático e desejado dos protagonistas do dia: Matthew Barney, o sátiro por trás do épico "Cremaster" e um dos mais conhecidos artistas da última década.

"T-shirt", jeans e ténis Adidas. Negro integral. Cabelo bem puxado para trás, pernas afastadas, pés firmes no chão e braços cruzados sobre o peito, tudo segurança e músculo q.b. Com um sorriso Gioconda e um vago encolher de ombros, ele, esta espécie de "sex symbol" "off mainstream" a quem alguém se refere maliciosamente como "ex-senhor Björk", é parco em palavras públicas, mas resume bem a questão. E a questão é: "Não há muitas oportunidades destas."

Estamos no Inhotim, Centro de Arte Contemporânea, ou, mais concretamente, estamos de volta àquele que se tornou num dos mais deliciosamente tóxicos e mal guardados segredos do circuito internacional da arte contemporânea: um ano passado sobre a última visita, estamos de volta à embriaguez da mais vibrante colecção de arte contemporânea da América Latina instalada aqui, num museu criado no meio do nada da mata atlântica brasileira.

Nem São Paulo nem Rio: Belo Horizonte. Um voo directo de seis horas a partir de Lisboa e, depois, uma hora a rodar bem para lá da periferia suburbana da capital do estado federal de Minas Gerais, com a auto-estrada a dar vez a uma estrada irregular e esta a um caminho de terra batida. Terra vermelha e, à volta, verde, um verde cada vez mais denso, húmido e abafado.

Maciços de bananeiras, bambu silvestre, cana-de-açúcar, palmeiras, jacarandás, hibiscos e, por fim, aquele sólido muro branco, inesperadamente imaculado.

Sabemos o que está para lá dele, mas, mesmo assim, mesmo à segunda visita, não deixamos de pasmar: um parque ambiental de 1200 hectares e, lá dentro, 45 hectares de jardins, parte dos quais desenhados nos anos 1980 pelo paisagista Roberto Burle Marx, o mesmo do Parque Ibirapuera, de São Paulo, e do Aterro do Flamengo, do Rio de Janeiro; no total, 30 quilómetros de espelhos de água e lagos ornamentais, aqui, numa região de exploração mineira em que a cidade mais próxima, o Brumadinho, se reduz a 30 mil habitantes.

Não há limites

Ao longo dos anos 1980 e 1990, este foi o jardim da casa de Bernardo Paz, zona de reclusão, afastada de tudo e todos onde em 2002 foi oficialmente criado o Instituto Cultural Inhotim, hoje com uma colecção de cerca de 500 obras assinadas por alguns dos mais conhecidos artistas do mundo e apontado por muitos como o mais importante acontecimento cultural do Brasil desde a fundação do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1947. Uma espécie de Gulbenkian elevada à sua máxima potência tropical e deslocada para onde menos se espera encontrá-la.

Dizíamos que, em tempos, este foi o jardim de Bernardo Paz. Na verdade, ainda é. Aos 60 anos, o proprietário da Itaminas, um dos mais importantes empresários siderúrgicos do Brasil, costuma almoçar e receber os seus convidados na maior mesa da esplanada do restaurante onde nós, os visitantes, também comemos. A sua casa fica a poucos metros, ao cimo de uma ladeira de acesso privado.

Desde que a sua colecção pessoal foi transformada em espaço público, objecto de participação financeira do Estado, Bernardo Paz tem consigo três comissários - o brasileiro Roberto Moura, o norte-americano Allan Schwartzman e o alemão Jochen Volz. São eles os responsáveis pelas exposições e aquisições do centro e, desde que existem, este homem alto e magro, de barba e cabelos longos e brancos no meio dos quais brilham dois penetrantes olhos azuis, prefere não falar à imprensa. Apesar disso, há um ano, explicava-nos: "Eu fiz a base do Inhotim, sonhei o resto e passei o meu sonho. Aqui trata-se de resgatar o sensível. Aqui a vida não tem limites."

No Inhotim, de facto, não parece haver limites: tudo é improvável, grande, desmedido. Tudo está à altura destas palavras: "Interessam-me artistas com ideias que vão para lá do que é habitual uma colecção privada ou institucional poder conter."

Quando Matthew Barney entra em cena, quando toda a muralha de câmaras e microfones de televisões, rádios, jornais e revistas se fecha sobre o seu rosto e ele, artista habituado a projectos de milhões, se chega à frente para dizer que "não existem muitas oportunidades desta", é à desmesura que se refere.

Em 2004 o Inhotim instalou-o com Arto Lindsay em Salvador da Baía. A ideia era que concebessem um projecto para o Carnaval da cidade. Barney construiu uma narrativa sobre o conflito entre Ogum - senhor orixá do ferro, da guerra e da tecnologia - e Ossanha - o orixá das florestas, das plantas e das forças da natureza. Construiu também um enorme carro alegórico dentro do qual a narrativa se desenrolava enquanto Arto Lindsay tocava e cantava instalado numa das pontas desta megaplataforma móvel, um bizarro alienígena cujo desfile foi registado em vídeo e transformado em filme. Desde então, o filme faz parte da colecção do Inhotim, que entretanto ofereceu a Barney um novo desafio: a construção de um pavilhão só seu, uma obra em nome próprio com o carro-alegórico-feito-escultura dentro.

Pesos-pesados

Uma floresta de eucaliptos e, de repente, uma cratera de terra revolvida, árvores derrubadas e de raiz à mostra e, lá no meio, uma dupla cúpula de vidro e ferro, dois enormes domos geminados e poliédricos que engolem e multiplicam ao infinito o reflexo de tudo o que os rodeia e cospem lá para fora, também multiplicado à vertigem, o reflexo de tudo o que recebem no interior.

O projecto de uma vida, noutros contextos. Não aqui. Só no mesmo dia de Barney o Inhotim inaugura três outros pavilhões de exposição permanente. Mais acima, mata adentro, Doug Aitken mandou terraplenar o topo de um morro para a construção do seu "Sonic Pavilion", cúpula geodésica dentro da qual uma sonda escavou metros coração da terra adentro para a instalação de microfones que captam e nos deixam ouvir o som vivo do planeta. Através do vidro, ao longe, no cimo de uma serra, vê-se a escultura "Beam Drop", de Chris Burden, feita com 71 vigas de ferro para construção que em 2008 foram levantadas no ar e deixadas cair por um guindaste para dentro de uma enorme vala de cimento fresco. Foram 12 horas a lançar vigas, faúlhas a saltar por todo o lado, até chegar ao expressionismo daquele padrão imprevisível, nova versão de um trabalho originalmente instalado em 1984 no Art Park, no estado de Nova Iorque, destruído em 1987.

Barney, Aitken e Burden: pesos-pesados, portanto. E a lista parece não acabar. Noutra zona, Doris Salcedo, a mais prestigiada artista colombiana da actualidade, mulher de dar o rosto apenas por causas maiores, tem também um pavilhão, uma estrutura arquitectónica em betão construída à volta de "Neither", uma sala alusiva a espaços de opressão como as prisões e que foi originalmente feita para a White Cube, de Londres. A inauguração foi no ano passado, pouco tempo depois de Salcedo se tornar na primeira artista latino-americana a intervir no Turbine Hall da Tate, em Londres, e no mesmo dia da inauguração do pavilhão de Adriana Varejão, com uma enorme tela da série "Saunas", uma das ruínas de charque que a tornaram numa das mais conhecidas artistas brasileiras da nova geração, o seu "Celacanto Provoca Maremoto", que esteve há anos no Centro Cultural de Belém, e uma série de pinturas que reconsideram o tema da antropofagia.

Valeska Soares, com o pavilhão que teve na Bienal de Veneza, Janet Cardiff e a sua extraordinária instalação sonora "The Murder of Crows", com 98 altifalantes e a sua narrativa de pesadelo lento, Cildo Meireles e o seu histórico "Desvio para o Vermelho", com "Através", que até ser adquirida pelo Inhotim tinha sido montada uma única vez, nos anos 1980, no Palácio de Cristal, em Madrid, e com uma das suas "Glove Trotter". São tudo pavilhões permanentes, uma lista a que deverão em breve juntar-se Dominique Gonzalez-Foerster, Olafur Eliasson e Pipilotti Rist, esta última com a instalação vídeo "Homo sapiens sapiens" que apresentou na Bienal de Veneza, em 2005, quando foi representante oficial da Suíça e que, à época, realizou já aqui, no Inhotim.

Dos anos 1970 à actualidade numa vertigem de formatos XL, maiores do que a vida: o Brasil pode até já ter sido um filho bastardo da Europa, praticamente ausente de tradições artísticas próprias, mas foi há muito tempo. Foi antes do Movimento Antropofágico e o Movimento Antropofágico já foi há quase 90 anos.

Com o texto que a 1 de Maio de 1928 lançou esse movimento, o poeta, romancista e dramaturgo Oswaldo de Andrade queria uma "revolução Carahiba", "maior que a Revolução Francesa", e posicionava-se contra quase tudo o que fora imposto pelos colonizadores, contra "a Memória fonte de costume" e "as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra", pedia uma "experiência pessoal renovada", um mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César". Chegados a 2009, com os Olímpicos ao virar da esquina e o Brasil a emergir como uma das maiores potências do mundo, temos que reconhecer: fomos nós que nos distraímos, de olhos postos nos estereótipos, enquanto esta revolução acontecia. Enquanto esta revolução se transformava num espaço como o Inhotim.

Têm acontecido coisas assim por todo o mundo. Nos anos 1980, nos EUA, houve Eli Broad que hoje mesmo está a tratar da construção de um novo e imenso museu em Los Angeles. Depois, nos anos 1990, a Grã-Bretanha teve Charles Saatchi, um mogul da publicidade que se fez rampa de lançamento para toda uma geração de artistas e a reinvenção da cena artística do seu país. Entretanto, decididamente, os anos 2000 viraram-se para outras latitudes. No México, apareceu Eugénio López Alonso que, há quatro anos, a "Forbes" apresentava como um supercoleccionador, um novo Médici. Não foi uma descoberta absoluta: já em 2002 a revista "Art News" o decretara como o maior mecenas da arte do seu país, um homem de 40 anos que vai abrir, em 2011, o seu museu, um espaço de 50 mil metros quadrados em plena Cidade do México, substituto para a galeria do Grupo Jumex, de que é herdeiro único e onde desde há oito anos expõe uma colecção de arte contemporânea internacional com cerca de duas mil obras e que se estima ter representado num investimento de cerca de 61 milhões de euros.

López Alonso começou a coleccionar aos 25 anos. Hoje, na galeria do Grupo Jumex, quatrocentos metros quadrados rodeados por espremedores e pausteurizadores industriais, expõe Gabriel Orozco, um dos nomes mexicanos mais estabelecidos da colecção, Minerva Cuevas (n. 1975) ou Iñaki Bonillas (n.1981), programaticamente enquadrados no contexto internacional ao lado de nomes conhecidos como Douglas Gordon, Jeff Koons, Paul McCarthy ou Maurizio Cattelan. Mas López Alonso não se limita a coleccionar e mostrar. 

Segundo a "Forbes", só entre 2001 e 2005 terá aplicado mais de 9 milhões de euros na criação de programas especializados em arte latino-americana em escolas e museus norte-americanos, no empréstimo de trabalhos a exposições internacionais e na edição de catálogos. Assumiu-se também como um dos principais patronos do Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles, onde tem financiado a criação de obras de artistas como Damián Ortega e estimando-se que, por ano, garanta a deslocação ao México de 25 críticos e comissários internacionais que chegam para ver a sua colecção, um tipo de acção instrumental na emergência de qualquer cidade fora dos circuitos mais tradicionais.

No aeroporto de Belo Horizonte também é fácil reconhecer os convidados internacionais do Inhotim, gente que vem de todo o mundo e volta a casa a pensar na extraordinária loucura de uma ópera no meio da selva.

No dia da inauguração de Matthew Barney, por exemplo, houve um concerto de Arto Lindsay numa clareira no meio da mata, as árvores dramaticamente iluminadas com luz verde, as sombras ampliadas e uma tempestade, a correr ao longe, relâmpagos cada vez mais perto: um país também se reinventa assim.

A jornalista viajou a convite do Inhotim, Centro de Arte Contemporânea

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