Paradoxo do comediante

A ficção é uma ilusão, uma forma de imitação da realidade, mas em "Ilusão" a própria realidade é uma imitação barata

"Ilusão (ou o que quiserem)" traz a seguinte indicação: "romance (ou o que quiserem)". Este "o que quiserem" representa a fluidez do romance como género já pouco codificado e a propensão lúdica, duas características que conhecemos dos romances de Luísa Costa Gomes. Lembremos que a escritora alternava a narrativa de "Olhos Verdes" (1994) com um ensaio sobre o filósofo Berkeley, e que o mais recente "A Pirata" (2006) é um pastiche dos romances de aventuras, em reescrita vagamente feminista. Nunca devemos esperar dos romances de Luísa Costa Gomes senão uma total liberdade de irem por onde quiserem.

É evidente que a ficção é uma ilusão, uma forma de imitação da realidade, mas em "Ilusão" a própria realidade é uma imitação, e imitação barata. O romance é uma sucessão de episódios mais ou menos pícaros, e progressivamente descosidos e implausíveis, cenas da vida de Jorge Cochonilha, actor quarentão que vive de biscates, locuções, anúncios. Jorge coordena um grupo de teatro, constituído por comediantes igualmente falhados e patuscos, e o verdadeiro teatro é a série de "projectos" infrutíferos da companhia, entre "coisa beckettianas" e a dança dos subsídios: "Queríamos algo experimental, mas que não afastasse o público; queríamos continuar o nosso trabalho de pesquisa ao nível da palavra, da elocução, mas não podíamos deixar para trás o trabalho de corpo; queríamos conteúdos contemporâneos, mas não elitistas; queríamos, enfim, uma peça séria, grave, profunda, reflexiva, mas também divertida, mesmo cómica, que pudesse entreter e educar" (págs. 19-20). Tudo em vão. Jorge tenta escrever uma peça e frequenta aulas de escrita criativa, mas estas mais parecem sessões de terapia para suburbanos.

É na sua vida, porém, que Jorge vive o maior teatro. O casamento caiu na rotina e no desinteresse, e por isso o protagonista combina com a esposa uma espécie de "guião". Cozinham estratagemas que os mantenham casados. É preciso motivação psicológica, um bom desenho da personalidade, verdade emocional e frases oportunas, como numa peça credível. Não é uma fantasia sexual, mas um contrato de entediados, enquanto ela não se entretém com o reiki e a macrobiótica. De resto, a mulher de Jorge, Teresa, vive também o seu teatro do quotidiano, porque é professora de uma turma liceal problemática (passe a redundância) e tem de aprender a "operacionalizar transversalmente [uma] estratégia interdisciplinar construtiva de inserção no ambiente da aula". Teatro, teatro, tudo é teatro. Enquanto isso, Jorge vai tendo amantes, paixões inconclusivas, e mesmo uma família virtual no Second Life. A tecnologia, aliás, já tornou tudo uma representação, toda a gente manda "e-mails" e mensagens de telemóvel a toda a hora, anda pelo Youtube, tem avatares. Portugal, na escrita de Luísa Costa Gomes, é um país de futebolistas iletrados, actores de novela ineptos, manequins sem expressão, participantes alarves de concursos televisivos. Se o comunismo era os sovietes mais a electricidade, o capitalismo é a massificação mais a Internet. E todos falam uma novilíngua feita de "valências" e "''outputs'' criativos". Como diz a professora de Jorge: "Você tem queda para o grotesco. Isso é bom, é contemporâneo."

O alvo é justo, mesmo se fácil, e as peripécias divertidas. Luísa Costa Gomes conhece o meio que satiriza, e domina os diferentes registos cómicos, sobretudo o jogo com as falas misturadas, as discussões estapafúrdias e as tiradas insólitas. Eis uma família da alta burguesia a discutir que peça que querem ver: "O filho mais velho voltou ao ataque: ''"Alcestis", segundo prémio; "Medeia", terceiro prémio; "As Troianas", segundo prémio; eis o palmarés de Eurípides.'' ''Mas "Hipólito", primeiro prémio; "Bacantes", primeiro prémio; "Ifigénia em Áulis", primeiro prémio'' disse o pai. ''Compare com "Édipo em Colono", que Sófocles escreveu aos noventa anos. Também primeiro prémio. Também produção póstuma'' disse o filho. ''Compare com "Ifigénia em Áulis", escrita por Eurípides aos oitenta'' contrapôs o pai. Falavam baixo, deixado espaço entre as falas" (págs. 177-178). E no fim disto, eis que os burgueses dispensam os actores e interpretam eles mesmos a peça escolhida.

"Ilusão" abdica à partida da continuidade dramática, mas no último terço exagera, com capítulos anarquicamente construídos, às vezes pensamos que Luísa Costa Gomes escreveu este romance enquanto fez a sua (notável) tradução de Jarry. Chegamos ao fim e todos os teatros fracassaram, incluindo um "centro cultural multimédia" numa terreola duriense e uma empresa de teatro ao domicílio. O paradoxo do comediante é que vendeu a alma para chegar ao topo e não chegou ao topo nem recuperou a alma. Entre tantos teatros, Jorge, o actor, nunca conseguiu interpretar bem a sua própria vida: "Tive uma pausa imperfeita. Eu não faço bem a pausa. Não tenho o sentido da oportunidade. Ou é longa demais e lança a perplexidade entre os presentes, ou é curta demais e não chega a ser reflexiva. No palco tenho esse mesmíssimo problema, em virtude do que nunca serei um grande actor - não domino a ansiedade que o silêncio me causa. Mal acabo uma frase, já me está a sair outra, não consigo representar uma pausa. Ou paraliso e faço pausas que se parecem com brancas. No palco, estou só a tentar manter o texto presente, mas por mais prazer que ele me dê, o que eu quero sobretudo é vê-lo pelas costas. O texto faz-me medo. Provavelmente é tudo assim na minha vida" (págs. 153-154).

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