Sandokan: o sucesso de Corto Maltese matou-o

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A história, incompleta, esteve perdida durante quase 40 anos e foi reencontrada por acaso. Nunca chegou a ser publicada. Até agora

Em 1971, Hugo Pratt vivia em Paris e raramente passava pela redacção do Corriere dei Piccoli. Mas, quando isso acontecia, havia uma pergunta recorrente à sua espera: "Então, já acabaste?"

Os autores da interpelação eram Mario Oriani, director da revista (suplemento infantil do diário Corriere della Sera), Giancarlo Francesconi, chefe de redacção da mesma publicação, ou Mino Milani, autor da adaptação para banda desenhada do livro OsTigres de Mompracem, de Emilio Salgari. E o que eles queriam saber era quando podiam, finalmente, ler a história de Sandokan que Pratt começara a desenhar em 1969 a partir do argumento de Milani.

O projecto Sandokan arrancara imediatamente após a conclusão de A Balada do Mar Salgado, publicada na revista Sergent Kirk desde 1967. Mas na altura em que Pratt dava corpo às primeiras imagens do herói oriental, Georges Rieu, chefe de redacção de Pif (revista francesa de banda desenhada) desafia-o para relançar Corto Maltese. O autor veneziano muda-se para Paris e canaliza toda a sua energia criativa para o desenvolvimento das aventuras do marinheiro de Malta, que obtém quase de imediato grande notoriedade, contribuindo para impor internacionalmente o talento do seu criador.

A pergunta era retórica e os responsáveis da revista italiana rapidamente perceberam o que estava a acontecer. Pratt deixara de se interessar pelas aventuras de Sandokan, que começara a desenvolver em 1969, com grande entusiasmo, com Mino Milani.

"Apercebi-me de que a pergunta não tinha sentido. Hugo instalara-se em Paris e dedicava-se à sua personagem; tínhamos que contentar-nos em publicar as histórias de Corto Maltese, cujos direitos tínhamos adquirido a Pif", conta Alfredo Castelli, argumentista de BD que integrou a equipa do Corriere dei Piccoli em 1971.

Ao ver as primeiras pranchas, apercebe-se de que há muito de Corto Maltese nesta versão do herói de Salgari. Yanez, o companheiro de Sandokan, fazia lembrar Corto e o próprio Pratt - bastava retirar-lhe o bigode -, e Marianne parecia uma réplica da protagonista de Ann de la Jungle, outra criação do artista veneziano.

De vez em quando ainda vão chegando algumas pranchas de Sandokan à redacção do Corriere, mas o artista italiano nunca acabaria a história. E nem mesmo a decisão de anunciar a publicação proximamente dessa obra, apresentada como "uma nova e muito original versão em banda desenhada" de Os Piratas da Malásia, produziu o menor efeito.

Com Pratt fora do projecto, a única saída era entregá-lo a outro desenhador, o que obrigaria a recomeçar tudo de novo. Não foi tomada qualquer decisão e os originais - cerca de três dezenas de pranchas - acabaram numa pasta amarela, cujo rasto se perde nos 37 anos seguintes.

A história foi encontrada em 2008, quase por acaso, por Alfredo Castelli. Repousava num arquivo pessoal onde a arrumara em 1975, quando saiu do Corriere. Já foi publicada em Itália e em França, mas, por agora, os admiradores portugueses de Pratt terão de se contentar com uma dessas versões.

Atmosfera de mistério

Durante estes anos, muito se falou daquela história-fantasma. Dominique Petitfaux, biógrafo de Pratt, sabia da sua existência, mas nunca tinha visto as pranchas, admitiu ao P2. No seu livro De l' Autre Côté de Corto, recolha das conversas e diálogos que manteve com Pratt ao longo de vários anos, interpela o artista sobre este assunto, que lhe responde: "Essas pranchas foram-me roubadas. Não sei por quem, mas Francesconi sabe e prometeu que mo dizia um dia!"

O próprio Pratt tentou seguir o rasto das suas pranchas. Falou disso a Castelli, que apelou a um amigo que trabalhava nos arquivos do Corriere della Sera. A conclusão foi desanimadora, segundo revela Castelli na introdução à edição francesa de Sandokan, Le Tigre de Malaisie (Casterman):

"Uma grande parte do material dos anos 1960 e começo dos anos 1970 tinha-se perdido, diz-se mesmo que foi queimada (!) para arranjar espaço nos armazéns. Tentei reconstituir os factos com Francesconi, Milani e outros redactores. Nada: os últimos indícios remontavam à famosa reunião em que se tinha decidido não publicar a história."

Nos meios ligados aos fãs da obra de Emilio Salgari, o assunto também era tema de discussão nos fóruns onde se aludia à eventual existência de uma adaptação de Sandokan à banda desenhada por Pratt. Para baralhar ainda mais as pistas e lançar uma atmosfera de mistério sobre o assunto, o próprio Pratt fazia declarações contraditórias. Negou a existência da história, para a seguir a confirmar. E em 1982, numa entrevista ao Corriere della Sera, citada pelo historiador de BD Claudio Gallo na referida edição francesa de Sandokan, Hugo Pratt alude à encomenda pelo director do Corriere dei Piccoli. A tarefa consistia em ilustrar Os Tigres de Mompracem, mas o projecto não se concretizou porque, diz Pratt, "o modo de adaptar o texto era talvez um pouco demasiado dessacralizante".

Na ausência das pranchas, especulava-se também sobre as fontes de inspiração da dupla Milani-Pratt. Segundo alguns, a história não se basearia num texto de Salgari, mas num raríssimo exemplar da adaptação teatral de Francesco Serravalli (1890).

Recriação original

A descoberta das pranchas é um episódio quase banal. Ao preparar uma recolha de histórias de um dos seus personagens (Omino Bufo), Castelli foi vasculhar numa caixa que não abria desde 1975. Além do que procurava, encontrou uma lista telefónica interna da redacção... e a maqueta com as provas de Sandokan. "Durante anos, procurei em toda a parte os originais da história sem me dar conta de que as suas reproduções perfeitas estavam ao alcance da minha mão", comenta.

O resto já é conhecido. Graças ao acordo da Cong, SA, sociedade gestora de todos os direitos da obra de Hugo Pratt, a editora italiana Rizzoli Lizard publicou a primeira edição mundial do Sandokan de Pratt. A edição francesa, publicada a seguir, é da responsabilidade da Casterman.

Qual é o lugar desta banda desenhada na obra do criador de Corto Maltese?

"É interessante historicamente na carreira de Pratt porque é a última vez que ele desenha uma história de que não é o argumentista", responde Dominique Petitfaux.

Contemporâneo de Corto, Sandokan provoca uma sensação de déjà-vu, como realçou Franco Castelli. A poltrona de costas arredondadas em que Sandokan se senta é quase idêntica à que Corto usa enquanto fuma um cigarro, por exemplo. "Sandokan surge na época em que Corto se torna uma banda desenhada importante, o que explica, sem dúvida, que Pratt não tenha considerado indispensável terminar Sandokan", nota Petitfaux. "De uma certa forma, foi Corto quem matou Sandokan", conclui.

Claudio Gallo, por seu lado, enfatiza a originalidade da criação de Hugo Pratt:

"A encarnação de Os Tigres de Mompracem realizada pelo ilustrador veneziano - que conferiu a Sandokan traços claramente orientais, tornando-o bastante mais inquietante do que os seus antecessores barbudos euro-asiáticos - é sem dúvida uma das mais originais de todas as que se sucederam nas bandas desenhadas."

Da segunda parte de OsTigres de Mompracem,Pratt faz apenas quatro pranchas e a história (inacabada) termina com Sandokan e Yanez a cair à água. "Diabo!", exclama Yanez.

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