Irving Penn: O fotógrafo da moda que desafiou a fotografia e a moda

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Era no estúdio que Penn mais sentia que estava o verdadeiro palco da sua arte Lisa Fonssagrives-Penn/REUTERS

Ficou sobretudo conhecido como o autor de centenas de capas e de páginas da Vogue. Fotografava a moda com uma "elegância clássica e um minimalismo cool". Mas dava o mesmo tratamento de estúdio às comunidades hippies de S. Francisco ou aos indígenas da Nova-Guiné, como às naturezasmortas e aos detritos das ruas de Nova Iorque

Ficou sobretudo conhecido como o autor de centenas de capas e de páginas da Vogue. Fotografava a moda com uma "elegância clássica e um minimalismo cool". Mas dava o mesmo tratamento de estúdio às comunidades hippies de S. Francisco ou aos indígenas da Nova-Guiné, como às naturezasmortas e aos detritos das ruas de Nova Iorque

Pablo Picasso escondendo-se (revelando-se) entre a gola alta de um casaco e as abas exuberantes do seu chapéu; Miles Davis captado na mágica negritude do seu rosto ou na expressividade da sua mão a tactear um trompete ausente; Alfred Hitchcock emergindo por detrás de um peru assado, de garfo em punho...

Estas são algumas das mais iconográficas fotografias de celebridades de Irving Penn (1917- 2009), o artista americano que morreu anteontem, aos 92 anos, na sua casa de Manhattan. Mas não é esta a primeira imagem que temos deste fotógrafo cuja carreira está indissociavelmente ligada às revistas Vogue e Harper's Bazaar, de cujas páginas foi frequentador assíduo durante várias décadas. Essa é a do Irving Penn fotógrafo da moda, que conseguiu desafiar as convenções do género ao "retratar manequins e acessórios contra fundos discretos e dispensando cenários demasiado elaborados que distraíam os olhares das próprias roupas", como ontem notava o jornal The Guardian ao noticiar o seu desaparecimento.
"Muitos fotógrafos pensam que o seu cliente é o objecto que estão a fotografar. Não é. O meu cliente é uma mulher do Kansas que lê a Vogue. A minha preocupação é despertar-lhe a atenção, estimulála, abrir-lhe o apetite... A fotografia discreta, que pode não ser a mais brilhante do mundo relativamente ao objecto retratado, pode tornarse enormemente mobilizadora para quem a vê numa revista", comentou Irving Penn numa entrevista ao The New York Times, dada em 1991.

Ao fotógrafo interessava, pois, estabelecer uma comunicação directa e efi caz com o leitorconsumidor. Mas isso passava por um estilo marcado por "uma elegância clássica e um minimalismo cool", como refere o NYT, ou seja, Irving Penn desenhava as suas fotografias com uma calma e um decoro que pareciam contradizer a própria essência da moda, e também a maneira como tradicionalmente os empresários e os publicistas a faziam chegar aos leitoresconsumidores. As suas fotografi as apostavam na simplicidade e na elegância, num exercício de composição em estúdio recorrendo quase sempre a uma luz discreta, quase imperceptível. E fizeram escola e história, como se pôde confi rmar na mais de centena e meia de capas que Irving Penn assinou na Vogue, desde que aí entrou em 1942, e desde que, no ano logo a seguir, fez uma primeira capa com uma natureza-morta - género que haveria igualmente de privilegiar no decorrer da sua carreira.

Irving Penn - que era o irmão mais velho do realizador Arthur Penn (autor de filmes como Bonnie e Clyde, O Pequeno Grande Homem e O Alvo) - nasceu em Nova Jérsia, em 1917, e estudou na Escola de Artes Industriais de Filadélfi a. Aqui foi aluno de Alexey Brodovitch, que haveria de o levar a radicarse em Nova Iorque, em 1937, e também a trabalhar, depois, na Harper''s Bazaar. Já na Big Apple, outro encontro determinante para a carreira do jovem fotógrafo foi o que teve com Alexandre Liberman, igualmente um director de arte da imprensa, que lhe abriria as páginas da Vogue.

Depois das revistas Em 1944, Irving Penn interrompeu a ligação às duas revistas alistandose no Exército Aliado e viajando para Itália. Depois do fim da II Guerra Mundial, foi para a Índia, onde começou a fazer fotografi a de viagem - experiência que o levaria, depois, a procurar outras paragens remotas do mundo e a fotografar os camponeses do Peru ou os indígenas da Nova- Guiné com a mesma dedicação que a sua câmara dispensava aos manequins da moda. Nos anos a seguir, fotografou as ruas e os trabalhadores anónimos de Paris, Londres e de Nova Iorque. Mas era no estúdio que Irving Penn mais sentia que estava o verdadeiro palco da sua arte. Fosse para continuar a retratar os manequins ou os produtos das marcas que o contratavam - foi, por exemplo, fotógrafo da fi rma de cosméticos Clinique, na viragem dos anos 60- 70 -, como para os objectos e as naturezas-mortas que cada vez mais o interessavam, também. E, nos antípodas do que era a prática do fotojornalismo, até as comunidade hippies de S. Francisco e os motards dos Hell''s Angels Irving Penn chamava ao seu estúdio, para lhes captar, após sucessivas horas de exposição, a sua verdadeira natureza.

Serralves em 2002 Sem surpresa, a sua obra chegou aos museus, às galerias e ao mercado da arte, com valorização progressiva. Em 1977, as fotografi as de objectos e detritos captadas nas ruas de Manhattan são tema de uma exposição no Metropolitan Museum of Art e, cinco anos depois, as suas naturezas-mortas são apresentadas na Marlborough Gallery, também em Nova Iorque. Objects for the Printed Page foi o título da exposição que apresentou, em 2002, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, comissariada pela fotógrafa alemã Ute Eskildsen, que, num texto do catálogo, contextualizava a produção desses "objectos" na sequência do trabalho que Penn vinha fazendo desde as naturezas mortas das exposições em Nova Iorque. "O estúdio fotográfico, até agora utilizado por Penn como enquadramento da imagem, é aqui transformado de modo consequente num palco para a apresentação linear dos objectos.

Independentemente do significado simbólico dos objectos por ele utilizados, maioritariamente ossos, crânios e corpos metálicos geométricos, reconhece-se no conjunto deste ciclo uma pesquisa das formas elementares no que respeita às suas correspondências plásticas e aos seus significados", escreveu então Ute Eskildsen. Desde há vários anos que as fotografias de Irving Penn são, por isso, bem-cotadas obras de arte. Em 2004, uma fotografia da série que o artista fez nos anos 50 da sua mulher (a ex-modelo e depois escultora Lisa Fonssagrives, com quem viveria até à morte desta, em 1992) foi vendida em leilão por mais de 38 mil euros. E não deixará de ser curioso ver agora o refl exo no mercado da arte da notícia da sua morte, já que estava agendado para ontem, na Christie''s de Nova Iorque, o leilão de 15 obras suas.

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