Ligações perigosas (Spoiler)

A frieza distanciada de Frears, o seu elegante olhar transverso, resgata as profundezas ocultas dos amores entre uma cortesã envelhecida e um adolescente perdido nas malhas do desejo.

Se há trinta anos disséssemos publicamente que a francesa Colette tinha lugar cativo entre os maiores escritores do século XX, ao lado de Proust, Faulkner ou Virgínia Woolf, teríamos direito a um sorriso escarninho: o misto de descarada frivolidade e de pudor trágico, que percorre os seus pequenos romances, crónicas e apontamentos sociais parece longe de tocar o cerne da essência humana; o seu mundo de cocotes e cortesãs, entre cenários de uma "belle époque" estilizada, com humor subtil e ligeiras pinceladas impressionistas, faz figura de um olhar retrógrado sobre uma sociedade aparentemente parada no tempo. E, no entanto, o tempo encarregou-se de lhe render justiça poética: toda a gama de sentimentos e as contradições do mundo afloram na falsa superficialidade da sua prosa simultaneamente floreada e simples.


O cinema que aparentava ser a arte por excelência para fazer jus ao seu génio passou-lhe ao lado, sobretudo na mais premiada e reconhecível das adaptações, o musical "Gigi" (Vincente Minnelli, 1958), versão açucarada de uma história perversa de prostituição programada. Max Ophüls "nasceu" para fazer Colette, mas ficou-se por um sub-produto da sua verve, Louise de Vilmorin, criando, contudo, uma obra-prima (um dos mais belos filmes da história do cinema), a partir de uma noveleta menor, "Madame De", com Danielle Darrieux a roçar a sublimidade de uma heroína "colettiana" - que magnífica Léa teria sido há uns anos. Houve uma actriz fadada pelo físico, classe, distinção e inteligência instintiva, para encarnar Minne, Mitsou ou Claudine, Audrey Hepburn, mas ficou-se por "Gigi", apenas na Broadway, escolhida pela própria escritora. Minnelli preferiu-lhe o charme insosso de Leslie Caron.

Apenas uma vez, até agora, um filme captara toda a infinita grandeza e secreta perversidade do seu universo, "La Naissance du Jour" (1970), feito para televisão pelo genial Jacques Demy (por favor, editem-no em DVD), biografia romanceada da romancista, com Danielle Delorme no papel de Colette e uma Dominique Sanda esplendorosa. Claro que há "Viagem em Itália", de Roberto Rossellini, mas quem sabe que se trata de uma versão livre de "Duo", um dos seus romances menos celebrados?

Por tudo isto se esperava da frieza distanciada de Stephen Frears, do seu elegante olhar transverso, o resgate das profundezas ocultas dos amores entre uma cortesã envelhecida e um adolescente perdido nas malhas do desejo e do tempo histórico. Quase tudo resultou bem, porque o realizador evitou as armadilhas do decorativismo fácil e do psicologismo de pacotilha, tirando partido da vulnerabilidade ambígua de Michelle Pfeiffer e da carnalidade andrógina de Rupert Friend (a lembrar Mathieu Carrière; lembram-se dele?), num jogo de massacre, mascarado pelos objectos Arte Nova e por um argumento artificioso de Christopher Hampton (o mesmo de "Ligações Perigosas"), a fundir dois textos de partida num só objecto uno: "Chéri" e "La Fin de Chéri".

As belíssimas cenas de interiores, de sexo sugerido, rimam na perfeição com os conflitos geracionais, patentes nos chás e recepções em jardins e terraços, embora a mãe de Kathy Bates destoe, pelo carregado tom caricatural, da leveza do tratamento de diálogos e "décors", cristalinos e "borbulhantes" como champanhe.

Mais sobre emoções e sentimentos (o mais difícil de filmar) do que sobre factos, "Chéri" passa pelo registo melodramático, sem ceder ao lacrimejante: o "amor louco" de uma mulher mais velha por um jovem, filho de uma companheira de profissão, ecoa o de "O Cavaleiro da Rosa" (a ópera de Richard Strauss, com libretto de Hugo von Hoffmanstahl), sem a caução aristocrática e vienense (ainda o universo conceptual de Ophüls a espreitar), mas com idêntica entrega e semelhante excesso.

Só que, em Colette, o abandono do ser amado nunca se reveste de resignação ou de aceitação da diferença de idades: Léa de Lonval (e a contenção extrema do olhar magoado da Pfeiffer encontra o tom justo para as penas de amor - sofre sem nunca o demonstrar) faz a "educação sentimental" de Chéri, mas fica prisioneira de uma relação quase incestuosa. Nenhum dos dois pode sobreviver à perda do outro; nenhum deles pode vencer as regras sociais, embora ambos se situem na marginalidade: uma reformada e rica prostituta de luxo e um "gigolô" enfeitiçado - ou seja, Colette no seu melhor. A maturidade da actriz serve esse olhar sobre um mundo que está a terminar, de arquitecturas florais, de carruagens, de hotéis em Biarritz, de véus, plumas, trajes sofisticados e de luxuriantes paisagens da alma, para sempre esfacelado pela Grande Guerra, terminando, de facto, um século XIX, artificialmente prolongado para além dos seus limites cronológicos. Tudo em "Chéri" (o filme) dá conta deste anacronismo latente, como se o tempo do filme se fosse desfazendo perante os nossos olhos incrédulos, como gotas de uma chuva persistente e miudinha.

A frivolidade dos encontros e desencontros depara-se com a pungência da renúncia compulsiva ao amor único e irrepetível. Do libertino e cáustico século XVIII de "Ligações Perigosas", passamos ao desencanto dos alvores da modernidade, pela voz de um narrador neutro e perturbante. Por isso, o final resulta comovente na sua arrepiante rarefacção. Por sobre as imagens da separação dos amantes impossíveis, aparece a informação seca e brutal do narrador: Chéri sobrevive à guerra para se suicidar logo a seguir. Que melhor epílogo para reflectir sobre a incompletude do amor?

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