Maestro de cerimónias

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O coreógrafo Xavier Le Roy cria uma ficção para um maestro que conduz uma imaginária orquestra invisível colocada na plateia. Este fim-de-semana, no Maria Matos, em Lisboa, as virgens sacrificadas de "Sagração da Primavera" somos nós.

Estreado em Paris em 2007 "Le Sacre du Printemps" chega a Lisboa num contexto particular, mesmo que marginal à apresentação este fim de semana no Maria Matos, em Lisboa. Celebram-se este ano os cem anos de constituição dos Ballet Russes, que estrearam a obra em 1913, permitindo-nos integrar a peça assinada por Xavier Le Roy dentro de uma discussão mais alargada entre forma e conteúdo e, sobretudo, num legado conspirativo entre movimento e música do qual fazem parte - e só no que à "Sagração da Primavera" diz respeito - coreógrafos tão diversos como Maurice Béjart, Pina Bausch e Raimund Hoghe.

Xavier Le Roy, em entrevista ao Ípsilon, explica que partiu do documentário "Rhythm is it!" (Thomas Grube and Enrique Sánchez Lansch, 2004) sobre o processo de ensaios de "Sagração da Primavera", com 250 jovens bailarinos coreografados por Royston Maldoom e sendo a Orquestra Filarmónica de Berlim conduzida por Simon Rattle, naquele que foi o primeiro grande projecto educacional do maestro inglês.

Tendo ficado surpreso com a condução de maestro que "não cantando, produzia sons" e "não dançando, se movimentava numa partitura própria", guardou, numa lógica respigadora, a liberdade desse comportamento em detrimento da funcionalidade e objectividade dessa acção. Do que viu ficaram "três a quatro por cento desses movimentos" que, com o tempo decorrido desde a estreia até agora, ganharam uma presença cada vez mais residual na construção da persona em cena, não exactamente um émulo de Simon Rattle, mas uma figura que, personificando um maestro, lhe atribui uma identidade autónoma do objectivo a que se propõe: dar a ouvir a partitura.

Expurgando a peça dos seus elementos identitários - a partitura é um elemento secundário, a narratividade desapareceu, o movimento existe isento de funcionalidade  -, o coreógrafo francês, interessado que está em explorar o modo como o corpo humano interage com impulsos externos e, a partir destes, desenvolver comportamentos passíveis de serem entendidos dramaturgicamente - no que é uma afinação programática da sua formação em biologia molecular  -, cria uma peça onde o acesso à partitura de Stravinsky se faz pelo filtro de "um estilo diferente". Mais: a liberdade interpretativa sugerida pelo movimento recupera uma tradição de rupturas iniciadas com a coreografia de Nijinsky, escandalosa na altura da estreia por distinguir o comportamento do corpo da estrutura musical, recusando assim uma linearidade e ilustração que seriam fundamentais para o desenvolvimento da dança enquanto disciplina autónoma.

Entre música e dança

Também aqui "há momentos escritos que correspondem à música e outros que não. Não é uma peça estruturada de A a Z em cópias dos movimentos do maestro e há mesmo momentos feitos em silêncio", diz o coreógrafo, assumindo que a peça fica na "fronteira entre dois universos: o da música e o da dança". Mas uma e outra bases são, para o caso, elementos essenciais mas não definidores (ou definitivos) de uma construção dramatúrgica que se prende mais com a relação que estabelecemos com a acção de assistirmos a um espectáculo do que com o espectáculo propriamente dito.

Este aspecto, que poderíamos identificar como cumplicidade, mas que segue a linha do que o próprio Rattle entende ser a reacção a esta composição em particular - "quando ouvimos esta música extraordinária apercebemo-nos de que não estamos sozinhos. É o seu calor, o seu calor ligeiramente perigoso, um prazer que nos belisca a carne [que nos atrai]", diz no documentário  -, está na origem de uma coreografia cuja eficácia reside na capacidade de manipulação dos códigos performáticos.

A evasão que é permitida aos espectadores que assistem a um concerto, seja porque as luzes estão apagadas, seja porque a música a isso convida, é aqui contrariada. Tanto pela "falta de protecção" a que Le Roy sujeita os espectadores, dispostos que estão como se numa orquestra e, de luzes da sala acesa, capazes de verem todos os movimentos e todas as reacções, como pelo facto de, seguindo a tradição arquitectónica inglesa (e que em Portugal só a Casa da Música, no Porto, aplicou), poderem ver o maestro, aqui através de uma espécie de sósia - o coreógrafo - reconhecendo-lhe, portanto, um rosto e uma identidade.

A figura do maestro - que em Rattle está visível em "expressivas erupções" - é entendida por Le Roy como alguém que "coloca em cena um processo de rememorização do que se passou nos ensaios". "Um maestro reactiva e re-interpreta uma acção" e, pela natureza da sua função, serve pragmaticamente de veículo de passagem entre o resultado produzido e a fruição do espectador.

"Interessa-me a recepção de um espectáculo", diz o coreógrafo que viu esta peça ser programada, na altura da estreia, não como parte do ciclo de espectáculos do Festival de Outono de Paris, mas no de música, possibilitando assim uma discussão sobre "a recepção diferente e particular, pouco alterada também", que os públicos de música produzem. Desde então o circuito fez-se mais pelos caminhos habituais da dança contemporânea mas as preocupações de Le Roy mantiveram-se. "Dei-me conta ao longo dos espectáculos que fiz que acedemos pouco à recepção das obras por parte dos espectadores. Eles podem sentir-se fisicamente implicados mas não podem reagir. Eu trabalho sobre a transformação dessa relação".

Razão pela qual passou a incluir na peça um momento de dialogo com o público: "não para explicar, não tenho mais nada a dizer para alem da peça", mas para "abrir a possibilidade de dizerem o que pensam".

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