As salamandras inteligentes e o avanço nazi

A sátira foi a arma usada por Capek para olhar para a sociedade em que vivia e lançar alertas sobre a Alemanha comandada por um chefe louco

Imagine o leitor que algures numa ilha dos Mares do Sul se descobria uma nova espécie de ser inteligente - salamandras grandes, quase do tamanho de homens, com uma queda especial para usar ferramentas e para estabelecer comunicação connosco. E imagine o leitor que a certa altura as salamandras aprendem a falar - aprendem a ler o jornal, a ler os anúncios. Seria como descobrir extraterrestres aqui mesmo, no nosso velho planeta. O que faríamos então com elas? Ora, pô-las-íamos a trabalhar, pois então!

É essa a ideia de partida de "A Guerra das Salamandras", do autor checo Karel Capek. O livro foi escrito em 1936, quando o avanço do nazismo e do comunismo na Europa já era bem mais do que um espectro. Nos EUA, que gostam de pensar em si como o reduto da liberdade enquanto os europeus concebiam maneiras de melhor se matarem uns aos outros, chegavam notícias da segregação racial - ideias que até inspiraram o racismo nazi. E o crescendo para uma nova guerra, a continuação da Primeira ou algo pior ainda, fazia-se ouvir como os trovões de uma tempestade que se aproxima.

Não eram tempos fáceis, não seria fácil rir - mas a sátira foi a arma usada por Capek para olhar para a sociedade em que vivia e lançar alertas sobre a Alemanha comandada por um chefe louco que olhava para o mapa e desenhava aquilo que considerava o seu "espaço vital", a exploração sem dó nem piedade dos trabalhadores por quem manda, a indústria de Hollywood com as suas historietas que adormeciam as almas.

A trama começa numa ilha a oeste de Sumatra (Indonésia), onde um capitão checo que trabalhava para holandeses descobre essas salamandras - capazes de mergulhar para apanhar pérolas de forma bem mais eficaz do que os humanos. E, se lhes desse facas para lutar contra os tubarões que infestavam aquelas águas, as salamandras trabalhavam de bom grado, recolhendo ostras com pérola.

A história começa a ganhar fôlego quando este capitão J. Van Toch regressa ao seu país e consegue que um empresário se interesse pelas imensas possibilidades de negócio destas salamandras. Não só para apanhar pérolas, mas até para construir novas terras, extensões da plataforma continental, onde poderão viver cada vez mais homens, em cidades cada vez mais fabulosas e prósperas.

As salamandras (entretanto cientificamente catalogadas como "Andrias Scheuchzeri", um género e uma espécie que mais parecem nome de pessoa), alvo de estudo de expedições científicas financiadas pela National Geographic, acabaram por ser espalhadas por muitas ilhas do Pacífico, mas também por todas as zonas litorais do mundo, como força de trabalho - fazem-se até experiências para verificar se poderiam aguentar as águas frias do Árctico.

E, enquanto isto acontece, aprendem a falar, a ler o jornal e a repetir o que dizem as pessoas que as vão ver aos zoológicos. A descoberta da primeira salamandra falante dá azo a umas quantas páginas em que é impossível não dar umas gargalhadas, perante o diálogo entre a salamandra e os ilustres cientistas que vieram ver o fenómeno, interrogando-o sobre os seus hábitos de leitura (pág. 84).

-Lê muitas vezes o jornal?

-Sim, senhor. Todos os dias.

-E do que é que mais gosta no jornal?

-As notícias dos tribunais, as corridas de cavalos, o futebol...

-Já viu alguma vez um jogo de futebol?

-Não, senhor.

-Então por que é lê as notícias relativas a esses assuntos?

-Porque vêm no jornal, senhor.

Conclusão desta conversa: a salamandra "interessa-se pelos mesmos assuntos que um inglês médio e reage a elas de uma forma semelhante, ou seja, tem a mesma opinião que a maior parte da população. (...). Não existe qualquer necessidade de sobrestimar a sua inteligência, uma vez que não excede em nenhum aspecto a inteligência da pessoa média dos nossos tempos" (pág. 86).

Ora aí está como de fenómeno falante as salamandras se transformam em lugar comum, prontinho a ser usado e abusado.

O empresário que o capitão Van Toch convenceu a investir nas salamandras conseguiu um monopólio do mercado (de venda das salamandras, classificadas em categorias de acordo com as suas capacidades, com uma cotação internacional), mas há piratas que continuam a tentar caçar salamandras em estado selvagem - selvaticamente e transportando-as em verdadeiros navios negreiros, nos quais a maioria destes anfíbios inteligentes morre.

A história só podia acabar mal, percebe-se que a distopia vai em crescendo. E, de facto, acaba muito mal, quando as salamandras arranjam um comandante (humano, ao que parece) que as faz explodir as novas terras conquistadas ao mar graças ao seu trabalho, para aumentar o "espaço vital" das salamandras, que são cada vez em maior número. Os europeus, desesperados, concordam em dar a China às salamandras, para desespero dos chineses - uma espécie de premonição do Acordo de Munique, alguns anos depois deste livro ser escrito, que entregou a Checoslováquia aos nazis, numa tentativa inútil de apaziguar a sua fúria expansionista. Isso acabou por acontecer no ano da morte de Capek, 1938.

Ele morreu de pneumonia, mas os nazis foram à procura dele a sua casa - a Gestapo considerava-o o "inimigo público número 2" em Praga, devido aos seus escritos, e ligações a políticos no poder na Checoslováquia.

Conclusão final? Parece ficção científica, mas isso é só a capa superficial do livro, que é uma sátira feroz à política da época em que viveu Capek. É datada porque tem referências a um período especialmente violento da nossa história, mas continua mordaz, e capaz de nos fazer rir e pensar ao mesmo tempo.

Sugerir correcção
Comentar