Especialista Florence Camard fala sobre Ruhlmann

Para a investigadora e historiadora de arte Florence Camard, o mobiliário e as peças de arte decorativa são objectos sagrados. Percebemos isso quando nos preparávamos para a entrevistar na antiga sala de jantar da Casa de Serralves e fizemos tenção de colocar uma pasta sobre o tampo de uma das cadeiras que Jacques-Émile Ruhlmann desenhara para o Conde de Vizela, há mais de sessenta anos: o seu olhar de severa reprovação mostrou-nos quanto isso poderia atentar contra uma peça que já há muito ultrapassou a sua função utilitária e se transformou em algo mais do que uma cadeira – é agora uma obra de arte para se admirar, de longe.

Florence Camard, professora na Universidade de Paris, que passou pela escola de artes do Louvre e se especializou em Artes Decorativas, é a maior conhecedora mundial da obra de Ruhlmann. A ele dedicou já vários ensaios e livros (um novo está já no prelo para sair em Setembro, em França). Antes de Serralves, Camard organizou exposições sobre Ruhlmann em Paris, Nova Iorque e Montreal. Mas nenhuma delas teve o cenário que esta agora tem, e que é único no mundo: uma casa contemporânea com o estilo e com o espírito do tempo em que estas peças foram criadas.

Por que é que chamou a esta exposição a “fraternidade das artes”?

Porque a “fraternidade das artes” era um conceito que defendia que todas as artes eram iguais, eram irmãs. É um movimento, o da arte nova, nascido por volta de 1900, que reivindicava colocar no mesmo plano as artes maiores – a pintura, a escultura e arquitectura – e as então consideradas artes menores, quer dizer, as artes decorativas. Foi Frantz Jourdain, o fundador do Salão de Outono em 1903, em Paris, que estabeleceu, sistematicamente, esta paridade entre todos os artistas. Para eles, a arte é só uma. A partir daqui, todos os artistas estão ligados por uma espécie de fraternidade, o que implica também, por exemplo, que um escultor vá fazer pintura, que um artista que trabalha o vidro vá fazer móveis... Há uma vontade dos artistas de assumirem aquilo que antes era o trabalho dos artesãos e que tinha sido posto em risco pela revolução industrial.

Como é que Ruhlmann entra neste movimento?

Quando ele era jovem – em 1900, tinha 20, 21 anos –, tomou contacto com este conceito. E ele estava plenamente em prática quando Ruhlmann expôs, pela primeira vez, na qualidade de construtor de móveis, mas não só, no Salão de Outono em 1913. Aí ele concebeu uma exposição como um trabalho de equipa. Desde então, vamos ver à volta da sua figura pintores, escultores, ceramistas, que ele associa a todas as suas criações. Isto tornar-se-á ainda mais nítido em 1925, na Exposição Internacional das Artes Decorativas e das Indústrias Modernas, em Paris, já que o regulamento exigia que cada pavilhão teria de ser uma obra colectiva. Ele criou o chamado Grupo Ruhlmann, com o François Pompom, o Joseph Bernard, o Alfred Janniot, o Jean Dupas, o Émile Gaudissard … Todos os artista que, ao longo dos vinte anos da sua carreira, vão estar associados a todas as suas manifestações.

Pode dizer-se que a obra de Ruhlmann é a expressão maior da art déco?

Claramente. Ele é um federador de todos os artistas, que acabam por depender de si. Ruhlmann acabou por os ajudar muito, a todos eles, que, sozinhos, dificilmente conseguiriam obter encomendas. Ele assegurava-lhes a notoriedade. E quando recebia uma encomenda, como aquela do Conde de Vizela a seguir à exposição de 1925, a sua casa era conhecida por conceber e construir obras de arte que eram criadas por esses artistas que o acompanhavam e partilhavam o mesmo ideário estético. Por exemplo, a escultura de Janniot e a pintura de Dupas, marcadas por uma espécie de maneirismo e neo-classicismo. Ruhlmann não era, certamente, um artista revolucionário. Ele defendida a ideia de que a arte se alimentava do passado, mas tinha de adaptar-se ao presente.

Como é que descobriu e se interessou pela obra de Ruhlmann?

Comecei a trabalhar sobre Ruhlmann há 25 anos. Descobri-o quando estava a trabalhar numa tese e deparei com um velho marceneiro que foi o que mais próximo esteve dele, Jules Deroubaix. Ele explicou-me que trabalhara como marceneiro na empresa de Ruhlmann entre 1926 e 31, mas depois ele o contratara para fazer a ligação entre o atelier de desenho e a marcenaria. Deroubaix conservara tudo aquilo que lhe tinha sido confiado por Madame Ruhlmann, que o estimava muito – ele cuidara dela, após a morte do marido em 1933 até à sua morte nos anos 50. Ela passara-lhe todos os arquivos. Não com o objectivo de lhe dar um presente, mas para assegurar que eles seriam preservados. Eu trabalhei em casa dele durante dois anos e copiei todos esses arquivos à mão, os desenhos, a descrição dos móveis…

O que é que a atraiu mais nessa obra?

Eu não a conhecia, de todo. Descobri-a nesse trabalho com o Sr. Deroubaix. Quando ele falava, eu tinha a impressão que Ruhlmann estava ao lado dele, vivo, a falar de si. Aprendi assim a amar este artista, que era um homem simples. Aprendi a compreender o seu método de trabalho. É que sobre Ruhlmann, desde os anos 30 até aos anos 70/80, diziam, incluindo os conservadores de museus, que não era mais do que um marceneiro. De facto, ele nunca tinha estudado nem tinha qualquer formação de artes. Trabalhava em madeiras, provinha de uma família de pintores da construção civil. Ele aprendeu a profissão na empresa do pai, e o que aprendeu de desenho e de pintura foi nessa área. Para além disso, pintava por gosto, e não poderia ser considerado um grande artista. Mas tinha um bom traço, o dom de desenhador. Libertou-se do estatuto de artesão e de empresário marceneiro quando começou a desenhar papel de parede e tecidos, respondendo a encomendas, a partir de 1909. Teve de esperar que o pai morresse para criar o seu próprio negócio e conquistar um estatuto mais artístico. Começou a expor os seus desenhos em 1910 e, em 1912, teve a oportunidade de comprar um edifício que lhe permitiu ligar duas lojas com frentes diferentes para as ruas de Lisbonne e de Maleville, no 8º Bairro, e criar, de um lado, a galeria de decorador e, do outro, a marcenaria. Graças a isto, ele pôde aplicar o dinheiro que ganhava como marceneiro numa dessas lojas nas artes decorativas e de mobiliário em que trabalhava na outra. Era assim que se auto-financiava. Ele explicava, em 1924, que desde 1913 nunca mais tinha ganho dinheiro, mesmo se vendia os móveis muito caros. Mas os materiais que ele usava custavam-lhe mais do que o dinheiro que podia pedir por eles. Não poderia continuar a trabalhar assim se não tivesse essa dupla actividade, que ele teve a sabedoria de conservar. Em 1919, como muitos decoradores da época, logo a seguir ao fim da guerra, e tendo em vista as exposições de artes decorativas, associou-se com um grande empresário-pintor, Pierre Laurent. Delegou nele a gestão da marcenaria, onde chegou a ter centenas de operários a trabalhar: a fazer pinturas de exteriores e interiores, espelharia, vidraria… Era um grande centro de trabalhos para a construção civil. Na outra loja, ele recrutava jovens artistas que saíam das escolas de arquitectura e de decoração.

O arquitecto Pierre Patout teve importância na sua formação artística.

Sim. A sorte de Ruhlmann foi ter feito o serviço militar, onde se cruzavam todas as classes sociais. Aí conheceu Pierre Patout, quando ele era ainda um estudante de arquitectura [e que viria a projectar o seu pavilhão Hôtel dês Colectionneurs para a Exposição de 1925]. Tornaram-se amigos, e Patout percebeu as reais capacidades deste autodidacta, particularmente inteligente, e que estava cheio de ambições artísticas. Quando acabaram o serviço militar, Patout conseguiu que ele seguisse um curso de pintura numa escola de artes. Foi aí que formou o seu gosto artístico.

Qual era o seu método de trabalho?

Ruhlmann desenhava os móveis em pequenos croquis, que depois passava aos seus assistentes para estes os ampliarem. E era sempre por referência a este croquis que os marceneiros faziam o seu trabalho. Mas ele não era um marceneiro: Ruhlmann criava os móveis com grande exigência de perfeição. Os jovens decoradores tinham grande dificuldade em criar um estilo próprio num tempo em que o modelo de perfeição era o que vinha do mobiliário clássico dos séculos XVIII e XIX. A forma de se demarcarem dessa concorrência do passado era apostar em objectos feitos com materiais novos e com uma qualidade excepcional.

Pode dizer-se que, com a morte de Ruhlmann, desaparece, de certo modo, uma época da art déco? Ele não deixou escola...

Ele não deixou escola, de facto. É preciso ver o seu desaparecimento no contexto histórico. Ruhlmann morreu em 15 de Novembro de 1933, a crise económica tinha chegado no ano anterior, e aquele fora já um ano muito difícil para ele. Mesmo assim, ele insistiu em manter essa política de excelência, essa vontade de afirmar sempre a sua arte. E de se distanciar do velho métier de marceneiro. Mas, como muitos decoradores, teve vida difícil. Muitos deles desapareceram definitivamente nos anos 30. Foi por isso que ele não quis que a sua casa lhe sobrevivesse. Gostava muito do seu sobrinho, Alfred Porteneuve, que era seu assistente, mas não acreditava que ele conseguisse manter o funcionamento das duas empresas.

Foi por isso que ele decidiu extinguir a sua marca após a morte?

Exactamente. Ele não quis que o seu atelier lhe sobrevivesse. No entanto, o seu sobrinho pôde continuar o trabalho que até aí tinha sido contratado. Foi o caso, aqui no Porto, com o Conde de Vizela, onde, durante todo o ano de 1934, Porteneuve continuou a fabricar e a enviar peças…

Disse, na visita guiada à exposição, que se Ruhlmann tivesse vivido mais tempo, a decoração da Casa de Serralves teria sido diferente.

Tê-lo-ia sido, sobretudo, na decoração. Ele não teria certamente permitido que o Conde comprasse velharias em antiquários, como vasos japoneses e vidros chineses, que não tinham qualquer coerência, por exemplo, com o móvel que estava no grande salão, com o belo espelho de fechadura de Janniot. Ele estava lá, ao lado de cadeiras portuguesas e de pequenas peças chinesas. Havia um desequilíbrio, uma discórdia no conjunto das peças. Ele, certamente, teria aconselhado o seu cliente a comprar e contratar artistas que assegurassem essa coerência.

Onde se encontram, hoje em dia, os móveis de Ruhlmann?

O mobiliário está disperso. Há-os na Colecção do Mobiliário Nacional em França. Porque, nessa época, início dos anos 20, os responsáveis compreenderam que o objectivo dos museus nacionais não era só conservar e restaurar os móveis antigos, mas fazer também entrar nas suas colecções mobiliário contemporâneo. O móvel a que chamamos L’Elysée, que ele expôs em 1915 no Salão de Outono, foi instalado no Palácio do Eliseu – daí o nome. Houve uma política de apoio aos decoradores a partir das colecções de mobiliário nacionais. E houve muitos museus na província que compraram peças dele. Há obras de Ruhlmann na Galeria Nacional das Artes Decorativas e mesmo no Museu do Louvre. Nos anos 50, o conservador do museu considerava Ruhlmann uma referência nas artes decorativas e de mobiliário do século XX. E há as peças que, apesar de tudo, foram passando de geração em geração. Ele nunca ficou completamente na sombra. Foi sendo sempre apreciado, mesmo nos anos 50. Mas foi sobretudo nos anos 70 que o estilo art déco recuperou toda a sua influência, em França e no estrangeiro. Ele nunca foi verdadeiramente esquecido, mas houve nessa altura uma espécie de reabilitação.

A presente exposição em Serralves tem a particularidade de se realizar numa casa e num cenário que é único no mundo.

Exactamente. E eu quis aproveitar ao máximo essa situação. Quando vi esta sala de jantar, pensei logo: “É preciso voltar a dar vida a este lugar, a esta casa”. Quando aqui entrei pela primeira vez, em Janeiro, foi um maravilhamento perceber que ia poder recolocar objectos preciosos neste lugar magnífico. Logo de seguida tive a ideia de ir à procura de móveis que podiam muito bem ter estado aqui, ter pertencido a este lugar. Mas foi só em Maio que descobri que a secretária do Conde de Vizela estava em Nova Iorque, na galeria Delorenzo, cuja directora eu conhecia. Disse-lhe logo que era preciso trazer esta peça, já que eu tinha os sofás de elefante. Era a oportunidade de criar a impressão, mesmo se não estão na mesma sala onde estiveram, de que Ruhlmann e o Conde estavam ali presentes, e juntos.

Já visitou o novo museu desenhado pelo arquitecto Siza Viera. Como vê o diálogo desta casa com a arquitectura e a arte contemporânea?

A fundação foi criada sobre uma propriedade, onde a moradia era o único edifício existente. A direcção da fundação e do museu quiseram jogar na diferença e no distanciamento. O arquitecto também teve o bom gosto de não querer colocar o novo museu junto à Casa. O parque permite-nos, por isso, viajar no tempo e encontrar um outro edifício nesta paisagem que inicialmente foi concebida a pensar na relação com a moradia, não com um museu de arte contemporânea. Mas é muito bom que haja, agora, esta dualidade, que enriquece a propriedade, mesmo se são duas construções que não dialogam directamente. De um lado, há a arte contemporânea, que tem pouco a ver com o passado. É bom que, para o século XX, haja este testemunho único no mundo. Fiz já exposições Ruhlmann em Boulogne-Billancourt [no Museu dos Anos 30, em Paris], Nova Iorque e Montreal. Mas não têm nada a ver com isto, com este maravilhamento de poder ver os objectos das artes decorativas viverem, de novo, dentro das casas para que foram concebidos, e não no museu.

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