O último jornalista

A graça de "Ligações Perigosas" está na transposição do clássico filme de investigação jornalística para o adverso contexto contemporâneo, quando ninguém tem paciência para ler o produto do extenso trabalho de campo de um jornalista e toda a gente corre para os "blogues" à procura de "opiniões".

Descobre-se ao que vem "Ligações Perigosas" quase como se constata um anacronismo. Obama já está na Casa Branca há seis meses, e este tipo de ficções paranóicas, crivadas de desconfiança nas instituições políticas americanas, é uma coisa tão "anos Bush" que até parece "démodée". Mas é um facto que "Ligações Perigosas" ainda é uma peça do "legado Bush", menos por alguma incompatibilidade entre a era Obama e as teorias da conspiração do que por questões muito concretas de lastro narrativo: em fundo está uma investigação sobre a contratação, pelo estado americano, de uma grande empresa privada de segurança para exercer funções no Afeganistão e no Iraque. E o modelo que mais tem sido referido, inclusive pelo próprio Kevin Macdonald (o escocês realizador de "O Último Rei da Escócia", com Forest Whitaker a fazer de Idi Amin), é um clássico da ficção politicamente paranóica, o "Os Homens do Presidente" que Alan J. Pakula rodou nos anos 70, narrando a saga de Woodward e Bernstein no desmascaramento do caso Watergate.


A raiz, no entanto, é britânica, baseando-se o argumento numa mini-série da BBC, em cuja adaptação trabalharam alguns argumentistas de calibre, como o omnipresente Tony Gilroy e Billy Ray, o realizador de dois notáveis filmes, "Shattered Glass" e "Breach".Estes são os dados de "Ligações Perigosas". Não inteiramente mal jogados, à sua maneira um pouco tosca e estritamente funcional. "Tosca" porque, e é quase uma norma contemporânea, quanto mais "engenhoso" (leia-se: mais cheio de reviravoltas, alçapões e rasteiras ao espectador) é o argumento mais os filmes andam a correr atrás dele, a apanhar-lhe as pontas, incapazes de lhe imporem, já nem dizemos um "ponto de vista", mas ao menos uma "respiração". E "funcional" porque a Macdonald nunca passa pela cabeça (e se passa não se nota) partir desta história para qualquer tipo de reflexão ou encenação mais profunda (como sucedia no seu confessado "modelo", o filme de Pakula, que usa o Watergate enquanto pretexto para uma visão, abstracta e assustada, da opacidade das estruturas do poder americano). Mas "não inteiramente mal jogados", ao nível dos detalhes (e a história, nem a tentaremos resumir ou seria preciso recomeçar o texto). Mais a sério do que o que tem a ver com a "era Obama" ou com a "era Bush", o que é verdadeiramente, e conscientemente, "démodée", é o papel dos jornalistas. "Ligações Perigosas", no que ao jornalismo diz respeito, está polvilhado de "efeitos de contemporaneidade", para mais no contexto americano - jornais a fechar, administrações e direcções em pânico, obsessões com o "online" e com os "bloggers". A principal graça de "Ligações Perigosas" está na transposição da lógica clássica do filme de investigação jornalística para este adverso contexto contemporâneo, quando ninguém tem paciência para a maçada que é ler o produto do extenso trabalho de campo de um jornalista e toda a gente corre para os "blogues" à procura de "opiniões" (é preciso sentir o desprezo com que o protagonista, Russell Crowe, profere estas palavras: "blogues", "bloggers", "opinião"...).

Os jornalistas, claro, são heróis clássicos do cinema americano, e na corrida de Crowe para desenlaçar os nós da intriga há um tom de "último hurrah" que faríamos mal em desprezar.

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