Memórias de um homem

Marcos Ana passou 23 anos da sua vida encarcerado pelo regime franquista. Um triste recorde para um preso político.

Nascido numa família de campesinos pobres da província de Salamanca, foi militante comunista desde a juventude e tinha 16 anos quando a Guerra Civil espanhola começou. Como milhares de outros republicanos vencidos que não conseguiram fugir a tempo de Espanha, foi preso em 1939. Por duas vezes foi condenado à morte, pena depois comutada em 60 anos de prisão. No final de 1961, Franco amnistiou os condenados políticos que estivessem há mais de 20 anos ininterruptos na cadeia. Marcos Ana exilou-se então em França, passando a dirigir em Paris uma organização de ajuda aos presos políticos do franquismo e respectivas famílias, que era simbolicamente presidida por Picasso.

Regressou a Espanha após a morte do ditador e iniciado o processo de transição para a democracia. Em 2007 decidiu finalmente publicar as suas memórias "da prisão e da vida", cuja tradução portuguesa, "Digam-me Como É Uma Árvore", chega agora às livrarias.

O título do livro vem de um poema do autor escrito na prisão de Burgos em 1960. Marcos Ana começara a escrever poemas em meados dos anos 50, poemas de combate político e urgência humana que eram uma forma de protesto contra a opressão franquista. Os processos rocambolescos como esses poemas eram passados clandestinamente para fora das prisões são recordados em "Digam-me Como É Uma Árvore". Um deles consistia em contrabandear os poemas de memória: um prisioneiro cuja libertação estivesse próxima memorizava o texto e, uma vez em liberdade, passava-o para o papel.

Resultado previsível verificado muito depois, já em liberdade, por Marcos Ana: os versos impressos com o seu nome nem sempre eram exactamente aqueles que ele escrevera. Mas foram esses versos que, naqueles anos, transformaram Marcos Ana num "poeta militante", símbolo e voz dos presos políticos do franquismo. Essa condição simbólica, de uma vida que representa e testemunha outras, de uma narração que poderia ter outros narradores e protagonistas, é uma das características deste livro. Como diz no prólogo Saramago, Marcos Ana não só "rejeita toda e qualquer tentação de olhar-se, complacente, ao espelho, como o despedaça para que, nos seus múltiplos fragmentos, venha reflectir-se a face dos seus companheiros de infortúnio".

O livro recorda uma infância muito pobre e católica (Marcos Ana é um pseudónimo formado pelos nomes próprios do pai e da mãe do autor; vítima, o primeiro, de um bombardeamento durante a Guerra Civil; vítima, a segunda, da "normalidade" franquista), o despertar da consciência política e social à entrada da adolescência, a guerra, o "turismo penitenciário" (naqueles anos em que a fúria persecutória dos vencedores transformou colégios e conventos em prisões), o exílio e as digressões de "trabalho solidário" pela Europa e América Latina, os encontros (os poetas Miguel Hernández, Rafael Alberti, Pablo Neruda, a rainha Elisabeth da Bélgica, Che Guevara...), e termina quando começa a democratização da vida pública em Espanha, no final dos anos 70.

Mas surpreendentemente, e só aparentemente em contradição com que o que dissemos, estas memórias são menos políticas do que puramente humanas, afectivas, íntimas e até calculadamente (?) "ingénuas". Marcos Ana conta "histórias comoventes". De sonhos, lutas e "solidariedade". Palavra que rima aqui mais vezes com emoção do que com ideologia. Por exemplo, a história (recordada com confessado embaraço) de certo retrato de Lenine que, como um ícone religioso, reconfortou os presos sujeitos a tortura. Ou a história (que compreensivelmente terá fascinado Pedro Almodóvar) de como Marcos Ana, aos 42 anos, acabado de sair do seu longo cativeiro, conheceu pela primeira vez o amor carnal com uma prostituta madrilena.

Escrito aos 87 anos, este livro é um testemunho de vitalidade e optimismo, sem sombra de ressentimento. São as memórias de alguém que não nomeia nem os companheiros que "tiveram fraquezas", nem os seus directos torturadores: "porque devem ter filhos e netos e tanto tempo depois não quero conspurcar a recordação que tenham dos pais ou avós". São as memórias de um homem. Um homem. Coisa rara.

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