Serralves, uma arte de coleccionar

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Juan Muñoz

Dez anos depois da exposição "Circa 1968", Serralves revela a sua colecção numa exposição em que se propõem confrontos inesperados entre as obras. A inauguração é hoje

No dia em que são comemorados os dez anos do Museu de Serralves é hoje inaugurada, no Porto, "Serralves 2009", uma exposição que revela o ponto da situação de uma colecção reunida ao longo de uma década.

Com poucas excepções, as obras agora reveladas pertencem ao espólio da instituição, permitindo assim entender um projecto iniciado com "Circa 1968".

Que compras têm sido feitas? Quais os critérios das aquisições? E ainda, por que razão não foi possível conservar no acervo trabalhos então disponíveis para compra como "Steel channel piece" (1968), de Bruce Nauman, "Il n'y a pas de structures primaires" (1968), de Marcel Broodthaers, ou o "Igloo com albero" (1969), uma obra emblemática de Mario Merz, agora propriedade do Castello di Rivoli, em Turim?

Em dia de "vernissage", é também revelada ao público a nova peça da artista brasileira Fernanda Gomes, que passa a integrar em permanência o parque de Serralves.

Há dez anos, o Museu de Arte Contemporânea de Serralves (MACS) inaugurava com a exposição monumental "Circa 1968". Na altura, os comissários, Vicente Todolí e João Fernandes, apresentaram um projecto para o núcleo histórico da colecção através de obras disponíveis para aquisição. A ideia para a constituição do espólio centrava-se num período com início em meados dos anos 1960, momento em que se alteram alguns dos paradigmas da arte do século XX, nomeadamente com o emergir de uma série de práticas artísticas através das quais se punham em causa as disciplinas tradicionais da pintura e da escultura - da Earth Art à Arte Conceptual, de Fluxus à Arte Povera, do Minimalismo à Performance, esta é a época de todas as revoluções.

Nos anos seguintes à "Circa 1968" a instituição procurou incorporar no seu espólio o maior número de trabalhos nessa colectiva e, segundo João Fernandes, actual director do MACS, esse objectivo foi conseguido em 80 por cento: "Logo de imediato colocaram-se outros desafios; um deles era como continuar a coleccionar para além deste contexto histórico que era o nosso ponto de partida para a colecção", nota.

É também por essa altura, há dez anos, que o mercado da arte, sobretudo através das leiloeiras, define esse período, com início nos anos 1960, como sendo o de uma mudança de paradigma. Esse facto faz com que algumas obras emblemáticas apresentadas na "Circa 1968", como as esculturas "Steel channel piece" (1968), de Bruce Nauman, e "Igloo com albero" (1969), de Mario Merz, ou a pintura "Il n'y a pas de structures primaires" (1968), de Marcel Broodthaers passassem rapidamente ao estatuto de objectos de desejo de instituições e coleccionadores privados (a obra de Mario Merz, por exemplo, foi adquirida para o espólio do Castello di Rivoli, espaço sediado nos arredores de Turim, Itália.

"Comprámos outras peças desses autores, mas acontece que a 'Circa 1968' aconteceu no último momento em que era possível criar uma colecção que integrasse esses anos dentro dos orçamentos que nós tínhamos disponíveis", sublinha João Fernandes. "O mercado da arte, nessa altura, dinamiza-se e entra num período de especulação crescente [que durou] até há pouco tempo; as casas leiloeiras internacionais abrem departamentos especializados em arte contemporânea que, precisamente, vão fazer aumentar muito o valor dos artistas desta época."

Para o director do MACS, foi a experiência do seu antecessor, Vicente Todolí - actual responsável pela Tate Modern, em Londres -, em fazer colecções, a sua credibilidade junto de galerias e junto de artistas, que permitiu obter condições favoráveis para a compra de algumas das obras, hoje parte integrante do espólio de Serralves.

Por vezes, esses trabalhos foram pagos ao longo de vários anos e, é um facto, se a instituição tivesse optado por outra via, hoje seria impossível reunir esse acervo, não só porque as obras teriam sido entretanto vendidas a outras entidades, mas também devido ao orçamento disponível para aquisições: "O 'igloo' do Mario Merz, uma obra que gostaríamos de ter na colecção, foi vendida por um valor elevado", refere João Fernandes, apontando de seguida a forma como se tornou evidente, após a solidificação do núcleo histórico do espólio, a necessidade de colmatar as lacunas do acervo relativamente aos anos de 1980 e de 1990, um trabalho em progresso.

Sem correr atrás do mercado

As novas aquisições não são ,contudo, realizadas sem o necessário recuo relativamente ao mercado: "Acho que os museus têm uma distância maior do que o coleccionismo particular em relação àquilo que acontece; raríssimas vezes um museu começa a comprar de imediato a última novidade", esclarece João Fernandes. "Interessa-nos adquirir obras que representam sempre um questionamento da condição do objecto de arte, da sua relação com a vida e, nessa medida, não estamos a correr atrás do mercado."

O director do MACS tem a consciência de estar a competir num contexto agressivo, com um número crescente de coleccionadores, institucionais e privados. Por isso, uma das políticas de aquisição de Serralves é a tentativa de incorporar na colecção trabalhos de artistas a quem o museu tem dedicado exposições: "Luc Tuymans não só falou com a sua galeria para termos condições muito especiais de aquisição de obras, como nos ofereceu, como Miroslaw Balka, o trabalho conjunto 'The Fence' [apresentado pela primeira vez na exposição 'Privacy', Casa de Serralves, 1998], e que nós vamos agora voltar apresentar."

Com o orçamento que actualmente dispõe para aquisições, um milhão e duzentos e trinta mil euros - 700 mil euros do Estado, 350 mil euros da própria Fundação e 180 mil euros da Câmara Municipal do Porto -, Serralves teria de gastar um quarto do seu orçamento para comprar uma das pinturas de Christopher Wool expostas recentemente no museu, na exposição "Porto-Köln". Contudo, há o desejo de integrar uma dessas obras no acervo, estando em curso negociações com o artista e com as galerias que o representam, de modo a ser possível obter as condições mais favoráveis para o negócio entre as partes - isto acontece após Wool ter doado à instituição uma das suas monotipias, com um valor de mercado elevado, igualmente visível na mostra que é hoje inaugurada. "Quando falamos em valores, eles ficam sempre aquém daquilo que são as ambições de qualquer museu", explica João Fernandes. É que nos últimos anos, em Portugal, "e em função da especulação do mercado da arte, houve obras que aumentaram mais de 100 por cento o seu valor desde que nós as adquirimos; há vários casos assim".

Confrontos

Um dos novos dados a ter em conta é a actual crise económica internacional, um factor que certamente irá ajudar a repensar muitos dos critérios e parâmetros do coleccionismo particular e institucional. "Um museu tem um programa de trabalho, critérios de escolha e, portanto, dentro desses critérios vai procurar as obras, não vai apenas absorver aquilo que está mais disponível à sua volta", afirma João Fernandes. "Por exemplo, nós temos comprado relativamente pouco em feiras de arte; quando pensamos que vamos representar a obra de um artista na colecção, começamos por trabalhar com ele, não começamos por trabalhar com a galeria."

É que, segundo diz, o museu reflecte a segurança de uma obra ser guardada, apresentada, investigada: "Apesar do coleccionismo privado ter evoluído imenso e ter também criado os seus próprios museus, há, no entanto, sempre uma incerteza - e hoje sabemos isso mais duramente quando vemos muitas colecções particulares a começarem e a dispersarem-se."

"Serralves 2009", comissariada por João Fernandes e por Ulrich Loock, director adjunto do museu, surge assim como resposta ao desafio de projectar aquilo que acontecerá no futuro na instituição: "Foi para nós importante colocar as obras em confronto de forma a criar novas pistas de leitura que não fossem os modelos mais tradicionais que poderíamos esperar ao nível da cronologia das obras, ao nível da sua indexação a movimentos, a grupos, a linguagens artísticas, a períodos, etc", refere João Fernandes. E acrescenta: "Interessou-nos interrogar a natureza e a condição da obra de arte nos confrontos inesperados que propomos com esta exposição; essa é uma linha de trabalho que não impede outras, porque algo que esta mostra inaugura é uma presença regular da colecção de Serralves nos espaços do museu".

Dez anos depois de "Circa 1968", a fundação dispõe de um acervo de 1500 obras, encontrando-se também cerca de 2500 obras em depósito em Serralves, sendo de salientar as da galeria Sonnabend, do Ministério da Cultura e da Fundação Luso-Americana.

E quem entrar hoje nas salas do MACS será desde logo confrontado com um desses trabalhos, neste caso o vídeo "Amazing Fountain" (1998), de Bruce Nauman, que nos diz: "O verdadeiro artista é uma maravilhosa fonte luminosa"...

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