A “mala mexicana” é tanto de Capa como de “Chim” e de Taro

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Afinal, aquilo que chegou a ser imaginado como sendo o Santo Graal do trabalho do fotógrafo Robert Capa mostrou-se mais relevante para a reapreciação da obra do seu companheiro "Chim". Estão finalmente reveladas as mais de quatro mil fotografias que os dois, e Gerda Taro, fizeram na Guerra Civil de Espanha. São novos documentos para a História

Há uma revelação surpreendente, um mistério que continua por resolver e, no final, uma conquista para a história da fotografia e para um conhecimento da História mais documentado. É esta a síntese feita pelos responsáveis do International Center of Photography (ICP), em Nova Iorque, terminada que foi a digitalização dos 4300 negativos que estavam guardados na já famosa "mala mexicana", também nomeada a "mala mexicana de Robert Capa" (1913-1954).

Já se sabia, desde a descoberta da mala - que, na realidade, continha três caixas - na Cidade do México, em Dezembro de 2007, que o tema das fotografias era a Guerra Civil de Espanha (1936-39), registada por aquele temerário repórter húngaro com a sua companheira Gerda Taro (1910-1937) e com "Chim" (alcunha do polaco David Szymin, 1911-1956). O que não se imaginava é que a autoria dos 126 rolos que constituíam o "tesouro" estava subdividida praticamente em partes iguais pelos três fotojornalistas: 46 rolos eram assinados por "Chim" (a caixa verde em que estavam depositados tinham as suas iniciais "Ch"), 45 por Capa, 32 por Taro e três por estes dois últimos.

 "Isto desvenda, pela primeira vez, o retrato do trabalho de 'Chim' em Espanha, e esse trabalho é verdadeiramente uma grande realização", disse Brian Wallis, curador principal do ICP, citado pelo The New York Times, aquando da apresentação pública do resultado do trabalho de digitalização dos negativos, um processo complexo que demorou mais de um ano.

Sabia-se que "Chim", que no início da década de 1930 tinha emigrado para Paris, onde assumiu a nacionalidade francesa (passou a chamar-se David Seymour) e trabalhou para semanários como os Regards e Vu, tinha acompanhado a guerra civil espanhola para publicações daquele país. Não se sabia é que, como as fotografias agora reveladas documentam, ele tinha estado tão próximo do campo de batalha e das sequelas que ela ia infligindo nas populações civis quanto os seus companheiros.

Referindo-se a este aspecto, o seu sobrinho, Ben Shneiderman, partilhou com o diário francês Le Monde "a emoção extraordinária" que experimentou ao observar as imagens, nomeadamente os negativos de uma das fotos mais célebres do seu tio, sobre uma mãe a amamentar o seu filho bebé e ao mesmo tempo, com o rosto parcialmente banhado pelo sol, a olhar o céu à espera do próximo bombardeamento. "O estilo de 'Chim' é facilmente reconhecível: ele conquistava a confiança das pessoas que fotografava", diz Shneiderman.

O ICP já programou, para Setembro de 2010, na sua sede em Manhattan, uma exposição exclusivamente dedicada às fotografias de "Chim", em paralelo com outra que documentará o conjunto do espólio da "caixa mexicana". Também já foi anunciada a produção de um documentário sobre o "tesouro", por Trisha Ziff, uma realizadora e escritora mexicana de origem britânica (é autora de um livro e co-autora de um documentário sobre Che Guevara), a quem se deveu o depósito dos valiosos negativos no centro de fotografia nova-iorquino, que foi fundado em 1974 pelo irmão de Capa, Cornell (1918-2008), também fotógrafo.

Estão ainda por esclarecer as circunstâncias que levaram a referida mala com os negativos a aparecer no México, 70 anos depois do seu abandono, por Capa, no seu estúdio de Paris, no final da década dos anos 30. Crê-se que terão viajado para Marselha, e aí sido recolhidos pelo general e diplomata mexicano Francisco Aguilar Gonzalez, que os transportou no seu regresso à Cidade do México.

Falta o miliciano morto

Há, porém, outro mistério que nenhum dos mais de quatro mil negativos agora revelados resolve: a do momento da morte do miliciano - supostamente o anarquista "Taino" - no fatídico dia 5 de Setembro de 1936, na localidade andaluza de Cerro Muriano, perto de Córdova, e que se tornaria na mais famosa fotografia de Capa e mesmo num ícone do fotojornalismo na sua expressão mais heróica. O facto de nunca ter sido encontrado o negativo do momento e do autor do disparo motivou já o aparecimento de teorias (e mesmo de um documentário) de que aquele instantâneo teria sido encenado pelo fotógrafo, algo que foi veementemente contestado pelo seu irmão, Cornell, e pelo seu biógrafo, Richard Whelan.

De facto, o episódio de Cerro Muriano não está contemplado no espólio da "mala mexicana". Daí que permaneçam as dúvidas sobre a sequência efectiva e completa desta "morte em directo", que se tornou numa das fotografias mais citadas da História.

É, aliás, para a História, e para a história particular da Guerra Civil de Espanha, e mais especificamente ainda para o sofrimento das populações civis, que vai principalmente contribuir a maioria das fotografias agora reveladas.

Elas documentam situações no campo de batalha, e registam retratos, até agora desconhecidos, de alguns protagonistas históricos da época, como a líder comunista La Pasionaria, o poeta e dramaturgo Federico García Lorca (assassinado em 1936, logo no início da guerra), ou o Presidente republicano Manuel Azaña Díaz. Mas é o drama da população civil que as fotografias registam, principalmente. Há longas sequências de imagens do quotidiano nos campos de refugiados no Sudoeste de França, como os de Argèles, de Bram e de Barcarès, em Março de 1939.

Documentar a violência

"A Guerra Civil espanhola é o primeiro conflito em que surge fotograficamente documentada a violência sobre a população civil. Escreveram-se muitos livros sobre as condições de vida dos espanhóis naqueles campos, mas estas imagens são dos primeiros documentos visuais [que sobre eles se fizeram]", disse ao jornal El País Ángela Giral, neta de José Giral, que foi chefe do Governo republicano nos anos da guerra. Ángela foi uma das participantes num simpósio organizado pelo Centro Juan Carlos I da Universidade de Nova Iorque, no início de Maio, e que abordou a importância das fotografias de Capa, "Chim" e Taro para melhor entender a história do conflito.

Com estas imagens é também possível "compreender o processo de trabalho destes fotógrafos, que encontraram nestes campos" - onde estiveram mais de um milhão de refugiados - "a expressão mais fiel do pesadelo e da desolação", comentou Cynthia Young, também comissária do ICP, que acompanhou a apresentação das fotografias no simpósio.

Não restam dúvidas, pois, sobre a importância da descoberta destas imagens - a que Brian Wallis chegou a chamar, em Janeiro, "o Santo Graal do trabalho de Capa". Mas agora sabe-se que a sua importância é extensiva aos dois outros repórteres que viriam a ajudar a marcar um estilo (e uma ética) do fotojornalismo de guerra. Algo que os seus destinos biográficos viriam, aliás, a consagrar e a mitificar: Gerda Taro morreu em 1937, em plena Guerra Civil de Espanha, atropelada por um tanque perto de Madrid; Robert Capa morreu em 1954, ao pisar uma mina no Vietname, no decorrer da guerra da Indochina, com a sua câmara fotográfica nas mãos; "Chim" foi atingido pela artilharia do exército egípcio na Guerra do Suez, dois anos depois.

Uma década antes (em 1947, em Paris), estes dois fotógrafos tinham fundado a emblemática agência Magnum, com Henri Cartier-Bresson.

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