Processos e contratos da Cova da Beira foram destruídos ilegalmente

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Os números disponíveis mostram mesmo que grande parte das operações de destruição de documentos efectuadas nos restantes serviços (58 por cento) nunca poderia ter acontecido se a lei fosse cumprida Adriano Miranda (arquivo)

A totalidade dos processos de fundos comunitários da Intervenção Operacional Ambiente do 2.º Quadro Comunitário de Apoio foi ilegalmente destruída em 2007, por decisão da Autoridade de Gestão do Programa Operacional do Ambiente. Entre os projectos cuja documentação foi eliminada encontra-se o da construção e concessão da Estação de Resíduos Sólidos Urbanos da Associação de Municípios da Cova da Beira (AMCB), cuja adjudicação ao grupo HLC está no centro de um processo de corrupção que tem julgamento marcado para Outubro.

Entre o material destruído contam-se os processos de candidatura aos financiamentos do Fundo de Coesão e a volumosa documentação relativa ao controlo da legalidade da contratação das empreitadas e fornecimentos e das despesas efectuadas no âmbito dos projectos aprovados. Em arquivo e à guarda do Instituto Financeiro do Desenvolvimento Regional (IFDR) ficaram apenas os relatórios que se prendem com a auditoria final e o encerramento da intervenção operacional. Esta documentação, que inclui uma auditoria realizada pela Inspecção-Geral de Finanças, reporta-se, porém, à globalidade do programa, não havendo qualquer detalhe sobre as centenas de projectos que dele faziam parte.

No caso da Cova da Beira, o IFDR tem em seu poder toda a documentação relativa à segunda fase do projecto, iniciada em 2001, já no quadro do QCA III, mas não tem nada sobre a primeira fase - aquela que foi investigada durante uma década pela Polícia Judiciária e levou este ano à pronúncia por corrupção e branqueamento de capitais de António José Morais (o antigo professor de José Sócrates na Universidade Independente), da mulher e do empresário Horácio Luís de Carvalho, presidente do grupo HLC.

Fundos da UE por esclarecer

O inquérito judicial teve em conta a documentação apreendida na AMCB e nos escritórios e residências dos envolvidos, mas os processos inerentes ao acompanhamento do projecto feito pela gestão do programa operacional não foram apreciados e estão agora reduzidos a cinzas ou a tiras de papel.

De acordo com as explicações fornecidas ao PÚBLICO pelo gabinete do ministro do Ambiente, a eliminação dos processos foi feita pela autoridade de gestão do Programa Operacional do Ambiente (QCA III), que os tinha à sua guarda, depois de obtido o parecer favorável da antiga Direcção-Geral do Desenvolvimento Regional (DGDR). A decisão foi tomada com base num regulamento da União Europeia que obriga à conservação dos documentos do Fundo de Coesão durante três anos após os últimos pagamentos dos projectos, prazo que expirara em Novembro de 2006, mas ignorou a legislação portuguesa.

A eliminação foi feita sem qualquer enquadramento legal, uma vez que o Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Desenvolvimento Regional (MAOTDR) não dispõe de nenhuma portaria de regulamentação arquivística que se aplique à antiga DGDR ou à gestão do Programa Operacional do Ambiente e a Direcção-Geral de Arquivos não interveio no processo.

Questionado sobre o fundamento legal da eliminação de documentos pelos serviços do ministério, o gabinete do ministro Nunes Correia afirmou que "na ausência de portaria de gestão de documentos, os serviços e organismos do MAOTDR regem-se pela legislação geral aplicável".

Os únicos serviços do MAOTDR que dispõem de portaria são o Departamento de Prospectiva e Planeamento, o Instituto de Conservação da Natureza e a Direcção-Geral do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Urbano.

Ao contrário do que se pode depreender de um diagnóstico publicado em 2003 pelo Observatório das Actividades Culturais, o director-geral dos Arquivos, Silvestre Lacerda, sustenta que "não há uma prática de eliminação maciça [de documentos] sem enquadramento legal". Se essa prática existisse, diz, "não havia 700 quilómetros de documentos acumulados" no país.

A ilegalidade da eliminação de documentos por organismos que não possuem a portaria de regulamentação arquivística, e que são a esmagadora maioria, deriva do texto da lei, mas o director-geral dos Arquivos diz que não é bem assim: "Mesmo que não haja portaria é possível proceder à eliminação controlada com base num mecanismo de avaliação documental, desde que este seja devidamente validado pela Direcção-Geral de Arquivos [DGA]."

Apesar disso, reconhece, as poucas dezenas de portarias publicadas estão muito longe das centenas que deveriam estar em vigor para regulamentar as práticas de milhares de organismos. Para ultrapassar esta situação, a DGA está actualmente a estudar a adopção de um outro sistema, no âmbito do PRACE, que prevê a publicação de uma única portaria por ministério. A solução em estudo, diz Silvestre Lacerda, prevê a concentração nas secretarias-gerais de cada ministério da responsabilidade da gestão de todos os seus documentos.

Lei é muitas vezes violada

Muitos serviços do Estado procedem, desde há longos anos, à destruição de documentos em violação das leis sobre arquivos. Para que a inutilização de quaisquer documentos seja legal é obrigatória a existência de uma portaria regulamentadora, aplicável à entidade que detém a documentação.
Um estudo de 2003 mostra que apenas 11 por cento dos organismos inquiridos dispunham dessa portaria. De então para cá a situação mudou, mas não muito: existem pouco mais de 30 portarias publicadas, cobrindo uma pequena parcela dos serviços obrigados a tê-las, e grande parte destes reconhece que elimina documentos.

Em todo o país contam-se perto de 800 depósitos - sem contar com os das autarquias -, mais ou menos organizados, com cerca de 700 quilómetros de prateleiras de documentos que deixaram de ser de utilização corrente. De acordo com o Diagnóstico aos Arquivos Intermédios da Administração Central, realizado em 2003 pelo Observatório das Actividades Culturais (OAC), só os ministérios da Saúde, Finanças, Trabalho e Agricultura possuíam nessa altura mais de 80 depósitos cada um, num total de 334 - a maior parte deles na região de Lisboa.

Uma das razões apontadas pelos especialistas para a acumulação de um acervo tão vasto prende-se com o facto, também constatado pela OAC, de que quase metade (42 por cento) dos serviços da administração central constantes da amostragem do diagnóstico conserva tudo, não eliminando qualquer espécie de documentos. Esta situação não deriva de uma vontade obsessiva de tudo guardar, mas antes dos condicionalismos legais criados com o objectivo de salvaguardar a documentação de interesse histórico e patrimonial.

Os números disponíveis mostram mesmo que grande parte das operações de destruição de documentos efectuadas nos restantes serviços (58 por cento) nunca poderia ter acontecido se a lei fosse cumprida. Isto porque "apenas 11 por cento dos organismos detêm portaria de regulamentação arquivística", normativo sem o qual a eliminação de documentos não é permitida por lei. Esta percentagem foi calculada pelo OAC a partir de um inquérito efectuado junto de 645 organismos, sendo certo que muitos deles podem estar abrangidos por uma única das 32 portarias publicadas até então.

Nos termos do Decreto-Lei 477/88, os serviços da administração do Estado, autarquias locais, pessoas colectivas de utilidade pública administrativa e instituições particulares de solidariedade social só podem destruir documentos desde que disponham de uma portaria conjunta do ministro da tutela e do ministro da Cultura que estabeleça, entre outras coisas, os prazos de conservação obrigatória de documentos e as normas relativas à sua avaliação, selecção e eliminação. Antes de 1988, a destruição de documentos já estava sujeita, desde 1972, a regras fixadas em portarias governamentais, mas até essa altura a sua publicação dependia apenas do ministro da tutela.

Francisco Barbedo, subdirector da Direcção-Geral de Arquivos, confirma que a destruição de documentos "é ilegal" se não houver portaria e que "há, de facto, muito poucas publicadas". Mas ressalva que há "portarias transversais que servem a muitos organismos, como é o caso dos hospitais ou das câmaras".

Na sua opinião, "é óbvio que há eliminação ilegal", embora não seja possível quantificá-la. O resultado da inexistência das portarias acaba por se traduzir, sobretudo, na acumulação desnecessária de documentos, que "de uma maneira geral é feita de forma anárquica e em más condições".

Posteriormente à entrada em vigor do D.-L. 477/88 foi publicado o regime geral dos arquivos e do património arquivístico (D.-L. 16/93), nos termos do qual "os critérios de avaliação e de selecção, bem como os prazos de conservação e a forma de eliminação de documentos, são definidos por decreto regulamentar". Passados 16 anos, o decreto regulamentar em questão continua por publicar, o que faz com que todas essas operações de gestão documental permaneçam dependentes das portarias previstas desde 1988.

Notícia actualizada às 11h18

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