“Quero que me aconteça alguma coisa hoje”

Paul Theroux vive no Havai está a preparar uma viagem a Angola. Aos 68 anos continua a sair de casa para ir à procura de histórias.

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Fernando Veludo/ NFactos

Quando o norte-americano Paul Theroux esteve nos anos 70 na Argentina passou algum tempo com Jorge Luis Borges. Visitava-o em Buenos Aires e Borges pedia-lhe para ele lhe ir lendo livros enquanto conversavam na biblioteca da sua sala. Quando estava a colocar um livro de Kipling de volta na estante, Theroux perguntou a Borges se alguma vez ele relia os seus livros. “Nunca. Não estou satisfeito com o meu trabalho”, respondeu-lhe Borges. Que se voltou para o norte-americano: “Releu os meus livros?”. “Sim. ‘Pierre Menard...’’, respondeu Theroux. Este episódio está contado no livro do norte-americano “O Velho Expresso da Patagónia” que acaba de ser editado pela Quetzal. Obra-prima da literatura de viagens, foi escrito há trinta anos. Originalmente publicado nos EUA em 1979, teve uma reedição para qual o autor escreveu uma introdução em 1997 - também na Quetzal saiu “Regresso à Patagónia”, publicado em 1985, diálogo entre Bruce Chatwin e Theroux sobre a influência da literatura na Patagónia.

Theroux, tal como Borges, também não relê os seus livros. “Passo tanto tempo a escrevê-los, tenho-os na cabeça, não preciso de relê-los. Está tudo aqui [aponta para a cabeça com a mão onde se vê uma tatuagem]. O que é que Borges me respondeu?”, é a vez de Theroux, 68 anos, perguntar, sentado num sofá da Biblioteca Florbela Espanca, Matosinhos, onde participou no encontro de escritores LEV- Literatura em Viagem. “Que não relia. Não precisava.” Por trás dos óculos os olhos agitam-se e muda de papel, deixa de ser o entrevistado. “Posso perguntar uma coisa? Borges é descendente de portugueses ou de espanhóis?”. Só sossega depois da resposta: de ascendência portuguesa. É a terceira vez que está em Portugal. A primeira foi em 1967/1968. Há dez anos voltou, de passagem entre Inglaterra e o Uganda, onde vivia. Tinha lido Eça de Queirós - “A Relíquia” e “O Primo Basílio”. “Por curiosidade”.

Comboio, essencial

“O Velho Expresso da Patagónia” é já considerado um clássico. “Este livro é sobre uma viagem. Não é um livro de geografia. Não é um livro de factos. Se fosse um livro factual, ninguém se interessaria por ele. Não é um livro político, é um livro sobre impressões, sobre pessoas, sobre comida, sobre paisagem, sobre conversas. E tem a parte dedicada a Borges. Tive sorte em conhecê-lo e em encontrar-me com ele.”

Quando fez a viagem que deu origem ao “O Velho Expresso da Patagónia” queria sair de casa, em Medford, Massachusetts, e seguir para a Patagónia, sem nunca deixar o contacto com o solo. O objectivo era apanhar o comboio que toda a gente toma para o trabalho, e continuar, mudando de comboios até ao final da linha. No seu livro “The Great Railway Bazaar” a ideia era mesmo subir para um comboio em Londres, atravessar o mundo e sair em Tóquio. Parte do fascínio pelo comboio tem a ver com o facto de ter sempre simbolizado a liberdade. “Cresci numa família que não tinha carro. Por isso entrar num comboio era uma forma de ir para longe. E se tinha alguma obsessão era ir para longe. Não pelo comboio em si, mas porque era ele que me levava. Viajar de comboio é uma forma relaxante de viajar. Podemos andar, dormir, comer, conhecer pessoas, ler um livro. Podemos ir de Lisboa a Hong Kong de comboio. Numa época em que há um alto consumo energético, o comboio tem mais valor do que nunca. Em vez de se ter tornado antigo e obsoleto, cada vez mais é um meio de transporte essencial”.

Durante os dias em que esteve em Matosinhos, Theroux passou algum tempo com o escritor angolano, nascido em Portugal, Luandino Vieira. Quando chegou perguntou: “Quem sabe sobre Angola?” Responderam-lhe: Luandino. E por isso se encontraram. A próxima viagem de Theroux será a Angola. “Não posso dizer que para mim seja um local misterioso, mas é um sítio desconhecido. Os sítios ideais para um viajante ir são os sítios sobre os quais ainda não foi nada escrito.”

“Já estiveram em Angola?”, pergunta, mudando outra vez de papel durante a entrevista. [O jornalista explica que esteve em reportagem com os rebeldes em Cabinda, Theroux continua a fazer perguntas]. “Não quero ir a Cabinda. Quero partir da Namíbia, ir para a fronteira, Huambo, talvez Lobito, Luanda e Kinshasa. Mas não através de Cabinda, ir pelo outro lado. Quero ir a Boma e Matadi e depois Kinshasa, no Congo. A maioria das pessoas com quem falo dizem-me: ‘Não vás, é estranho, é difícil’. Pergunto-lhes: ‘Estiveram lá?’ Respondem que não mas que ouviram dizer. Por isso queria falar com alguém que conhecesse mesmo o local.”

É habitual tentar falar com pessoas que estiveram nesses sítios? “Não. Habitualmente leio sobre os sítios e costumo olhar para mapas. Mas há muito pouco escrito sobre Angola, em inglês.”

Viveu muitos anos em África. O primeiro emprego que teve foi como professor no Malawi. “As pessoas eram auto-suficientes, havia combustível, havia água. Agora têm sérios problemas de falta de água e de comida. Na Europa as pessoas estão preocupadas com dinheiro, com a economia, com o desemprego mas imaginem se vivessem no Malawi, no Quénia, no Congo, ou em muitos outros lugares. A vida corre muito pior a essas pessoas. Quando se viaja descobre-se isso. Descobre-se como é que se vive no mundo.”

Essa ainda é a única maneira de o descobrir? Com tantos instrumentos que temos à disposição para estar nos sítios sem estar... “Ver coisas na televisão é só entretenimento. É só meia hora ou uma hora. Não são quatro meses. Eu vejo coisas na televisão, vejo fotografias... Vivi em África e ainda lá costumo ir e quando as pessoas mostram fotografias de África, não é a África que conheço. Não acho que seja genuína. Eu diria que por causa disto é que temos de viajar. Porque é só quando vemos que percebemos o que se passa. A Internet está cheia de informações inexactas. Está num estádio inicial de desenvolvimento. Vai servir para alguma coisa, mas para já é um instrumento primitivo.”

Viagem vs. ficção

Há quem ache que a literatura de viagens é uma forma de ficção. Theroux não concorda. “Um relato de uma viagem é um relato fiel dessa viagem. Não se inventa. É um documentário. A ficção está cheia de invenção, de imaginação, fantasia. Com o livro de viagens, quando nos sentamos para o escrever, sabemos como vai acabar. Mesmo antes de começar a escrever ‘O Velho Expresso da Patagónia’ já sabia que ia acabar por ir parar à Argentina. Quando se está a escrever ficção é como uma viagem na nossa imaginação, não sabemos para onde nos leva.” 

Quando pensa escrever um livro de viagens não inventa, embora use técnicas do romance: diálogos, descrições de características pessoais, paisagens. “Se formos um grande romancista podemos ser um grande escritor de viagens. Porque um grande romancista pode dar vida a um livro de viagens. Um dos problemas dos livros de viagens é que são escritos por viajantes e não por romancistas.” Mas admite que também cria as situações. “Temos de ser activos, criativos. Temos que ser expeditos. Não nos podemos sentar, tomar uma bebida e observar: ‘Ah que interessante pôr-do-sol’. Temos de confrontar as pessoas. Falar com elas. Entrevistá-las.” Mas sem lhes colocar gravador à frente. “Na verdade quando se viaja não se entrevistam pessoas, fala-se com elas. Se elas acharem que vamos tomar nota do que nos estão a dizer, não nos vão dizer as coisas da mesma maneira. Devemos falar com elas como se fossem nossas amigas. Um dos aspectos mais difíceis da viagem é o facto de ela requerer energia física. Precisamos de ser fortes para viajar: optimistas e fortes. Porque temos de nos levantar todos os dias e dizer: ‘Quero que me aconteça alguma coisa hoje’. Quando estamos em férias não queremos que nada nos aconteça: queremos dormir, fazer amor, comer, beber. É essa a diferença.”

Quando faz uma viagem tem sempre livros por perto. “Tenho um livro no quarto. É do Paul Bowles. Chama-se ‘O Céu que nos Protege’. Um livro extraordinário e estranho. Li outros livros dele e ele também escreveu um livro de viagens, ‘Their Heads are Green and Their Hands are Blue’. É sobre o Sri Lanka, África, as diversas viagens que fez. Mas viveu em Marrocos a maior parte da vida. Era um homem estranho, não tinha telefone. Por isso disse a um empregado do hotel que queria conhecer Bowles e ele deu-me o seu endereço. Pedi-lhe para lhe entregarem a minha mensagem. Fui a casa dele. Um homem abriu-me a porta e levou-me por uma série de quartos. Estava frio dentro de casa e no último quarto, um quarto pequeno, vi Bowles, sentado no chão. Disse-me: ‘A minha perna dói-me’. Tinha um aquecedor eléctrico. A casa toda estava fria mas aquele quarto estava aquecido. Ele estava sentado a escrever e perguntei-lhe: ‘Como vão as coisas, costuma viajar?’ Bowles respondeu que não. ‘Não me tenho sentido muito bem’. E pensei para mim: quando for velho (ele devia ter 82 ou 83 anos) não quero estar a viver assim. Sentado no chão a escrever. Pensei: isto é um pesadelo para mim. Quero viver mais confortavelmente do que isto. Não é que me assustasse aquela imagem. O que não queria era acabar assim.”

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