Contra o esquecimento

O que é que liga a memória do mal, a Guerra Fria, a herança do marxismo, Israel, as políticas públicas e a América liberal?

É frequente a obra de certos historiadores ultrapassar o âmbito do público especializado. Para dar um exemplo planetário, isso acontece com Eric Hobsbawm e, em particular, com o seu livro "A Era dos Extremos" (1994).

Em certos países, Hobsbawm tornou-se mesmo uma espécie de "herói cultural popular". Não se pode dizer o mesmo de Tony Judt (n. 1948), mas quando "Pós-Guerra" foi traduzido no nosso país, toda a gente fixou o seu nome. Não é todos os dias que alguém faz da história do pós-guerra e da reconstrução europeia uma narrativa empolgante.

Professor de estudos europeus na Universidade de Nova Iorque, cidade onde dirige o Instituto Erich Maria Remarque, publicou no ano passado uma obra aparentemente menos ambiciosa: "O Século XX Esquecido". A aparência ilude. Estes ensaios sobre lugares e memórias, escritos entre 1994 e 2006, primeiro publicados em sítios tão diferentes como a "New York Review of Books" ou o "Haaretz" (o mais antigo diário de Israel), constituem, na verdade, uma história das ideias. O seu espectro é vasto: "dos marxistas franceses à política externa norte-americana, da economia da globalização à memória do mal", nada fica de fora. São notáveis os textos que dedica a Edward Said, Albert Camus, Hannah Arendt, Primo Levi, Arthur Koestler, Louis Althusser e Eric Hobsbawm. Ao longo do livro, numa linguagem sempre vigorosa, Judt opõe as teses progressistas dominantes (Sartre, Foucault, Sontag, etc.) às que o fascismo celebra (Jünger, Céline, Eliade, etc.). Outro tema recorrente é a supremacia do cosmopolitismo cultural por oposição às periferias geográficas e linguísticas.

A partir das recensões de obras de Ernest May ("Strange Victory: Hitler's Conquest of France", 2001) e John Lewis Gaddis ("The Cold War: A New History", 2006), Judt escreve com proficiência sobre, respectivamente, a derrota francesa de 1940 e a história da Guerra Fria. Nos dois casos, contradita algumas conclusões. No tocante a Gaddis vai mais longe. Reconhecendo vivacidade na descrição dos políticos americanos, nota que Gaddis tropeça fora de portas, sobretudo no terceiro mundo: "Em resultado, este é um livro cujos silêncios são especialmente sugestivos. [...] é preciso uma perspectiva singularmente estreita [...] para publicar uma história da Guerra Fria com um índice remissivo sem uma única entrada para a Argentina, o Brasil, a Venezuela, o Panamá, Granada ou El Salvador, para já não falar de Moçambique, do Congo ou da Indonésia." Ter "vista curta", diz Judt, é o preço a pagar por pensar a Guerra Fria a partir de Washington. Isso explica as omissões e o descaso com que são tratados acontecimentos ocorridos no Irão e na Guatemala, por exemplo.

A Guerra dos Seis Dias, que em Junho de 1967 reconfigurou o mapa e a política do Médio Oriente, é comentada num texto que explica a sua decepção com o "sionismo intolerante, ultra-religioso" e messiânico que adveio da vitória de Israel contra o Egipto, a Síria e a Jordânia (mais a coligação árabe que os apoiou). Judt, que tem uma costela judaica pelo lado do pai, descendente de rabinos lituanos, viveu num "kibbutz" em 1966-67. Conta como o ambiente era "provinciano e puritano", esvaziado de qualquer sugestão erótica. Ele próprio foi "severamente repreendido" por trautear canções dos Beatles. Assistiu à chegada, "especialmente da América, de uma nova geração de imigrantes entusiastas [para quem] a derrota dos inimigos históricos de Israel não era o fim da história, mas o início." O ponto de partida do ensaio, que não é o único a ocupar-se de Israel, foi "Six Days of War" (2002), de Michael B. Oren, obra de "grande erudição e escrita viva", apesar da queda do autor por "verbos infelizes". Foi o último texto que Judt publicou na "New Republic": Oren não gostou do que leu e escreveu uma carta injuriosa que a revista publicou na íntegra. A defesa que Judt faz de um só Estado para Israel e a Palestina azedou a troca de ideias.

Muito mais haveria a dizer sobre este livro admirável. Antes de terminar, gostaria de recomendar com veemência o ensaio dedicado a Hobsbawm. Cito a seu favor o que ele diz do outro: "O seu estilo é límpido e claro. [...] é um mestre da prosa inglesa. Escreve história inteligível para um público que sabe ler." Fica dito.

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