O poder da memória

Um livro belíssimo sobre esperanças que ficaram por cumprir, e em que a história da Irlanda se insinua como uma presença perturbante

"Escritos Secretos" foi finalista do Man Booker Prize em 2008, e ganhou o Costa Book of the Year.

O autor, o irlandês Sebastian Barry (n. 1955), além de romancista é também dramaturgo e poeta. Neste romance cruzam-se dois diários, um de Roseanne McNulty, uma mulher com perto de 100 anos, internada num hospital psiquiátrico há talvez mais de 60 anos, o outro ("livro das banalidades"), o de Dr. Grene, psiquiatra, viúvo recente da mulher com quem quase nunca se entendeu durante os muitos anos em que estiveram casados.

O Hospital Psiquiátrico Regional de Roscommon, uma velha mansão oitocentista pintada de creme e com trancas nas portas, vai ser demolido, e o Dr. Grene é encarregado de avaliar quais os doentes que terão de ser transferidos para o novo hospital (que terá, obviamente, menos camas), e quais os que poderão regressar à comunidade e ser nela integrados.

Há no hospital uma meia centena de idosas para quem a mudança seria "uma espécie de violação". Para Roseanne a escrita da história da sua vida é um acto clandestino, uma história que ela escreve para deixar as folhas debaixo da tábua do chão (escritos secretos). A velha senhora já não tem no mundo ninguém que a conheça: "Ninguém sabe sequer que tenho uma história. No ano que vem, na semana que vem, amanhã, terei certamente desaparecido, e só precisarão de me arranjar um caixão pequeno e uma cova estreita. Não haverá uma lápide junto à minha cabeça, e não importa." A única pessoa que a "conhece" é o Dr. Grene, psiquiatra naquele hospital há 30 anos; ele vai ter que a preparar emocionalmente para a mudança. Mas enquanto o tenta fazer, é a velha mulher quem vai servindo de amparo à dor existencial do médico.

Aos poucos, pelo cruzar dos diários das duas vozes narrativas (o psiquiatra recorre a documentos há muito esquecidos), o leitor vai-se apercebendo que as histórias são contraditórias, e a razão do sofrimento vai emergindo. A história da Irlanda no último século começa a insinuar-se como uma presença quase maligna, que perturba, como uma mancha que alastrou por onde menos se esperava, e que foi conspurcando as vidas desde há muitas décadas.

Apercebemo-nos que Roseanne foi uma das suas vítimas, vítima das lutas entre Unionistas e Nacionalistas, Católicos e Protestantes, ou deles todos juntos. Ela fora internada à força por razão de uma suposta loucura que nunca existiu. A escrita diarística, no caso de Roseanne, funciona como "auto-ajuda", resgatando traumas pessoais mas sobretudo problemas escondidos da identidade e da história irlandesa. Aquilo que é "recordado" pode ser diferente do que realmente aconteceu. A memória usa mecanismos de fuga que ajudam a "salvarmo-nos", há que dar um sentido ao passado, mesmo que este não tenha acontecido exactamente assim. (Numa recente entrevista ao jornal inglês "Guardian" Sebastian Barry confessa que se inspirou na história de uma sua tia-avó que nos anos 20 fora internada num asilo psiquiátrico por razões de vergonha familiar. E fala ainda das centenas de mulheres internadas na Irlanda por terem engravidado antes ou fora do casamento. Roseanne foi apenas mais uma dessas "desaparecidas".) O passado surge como um terreno minado, o qual é preciso pisar e avançar com muito cuidado. A História, que foi coberta com um pano mais ou menos transparente, começa a ser desvelada.

Mas o que mais impressiona, para além da história, é a beleza lírica da escrita de Barry, a sua exactidão poética, o estilo quase inebriante, e o recurso sábio ao folclore irlandês, com as suas histórias de fantasmas e antigas tradições rurais. Este é um livro belíssimo sobre perdas, promessas e esperanças que não foram cumpridas. É, seguramente, um dos acontecimentos literários do ano.

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