Um momento do falso

No mês passado, em Paris, no leilão da colecção Yves Saint Laurent e Pierre Berger, a Christie's vendeu por quase nove milhões de euros uma obra muito particular de Marcel Duchamp: "Belle Haleine - Eau de Voilette", de 1921 e realizada com Man Ray. Esta pequena peça, um frasco de perfume e respectiva embalagem em cartão de cor violeta, é não só um dos pontos de partida dos readymade rectificados, mas também o primeiro trabalho em que o artista surge travestido de mulher.

O desvio operado por Duchamp ao perfume "Un Air Embaumé", comercializado pela Maison Rigaud, teve uma importância determinante para a definição da identidade de uma figura criada por si em 1920, Rose Sélavy, alter-ego feminino do artista.

É, aliás, muito curiosa a explicação que o autor dá a Pierre Cabanne para a criação desta personagem: "A primeira ideia que tive foi a de adoptar um nome judeu. Sou católico e passar de uma para outra religião, isso muda. Não encontrei um nome judeu que me agradasse ou que me tentasse, e de uma só vez tive uma ideia: por que não mudar de sexo! Era muito mais fácil."

Anos mais tarde, em 1967, um outro andrógino, Andy Warhol - e são inúmeras as vezes que os trabalhos deste artista se cruzam com os de Duchamp - decidiu desviar uma água de toilette banal, "Silver Lining", produzido pela Cassel, para o interior de garrafas de Coca-Cola, que prateou. O perfume, que primeiro esteve para chamar-se "Eau d'Andy", acabou por denominar-se "You're In", uma marca que, pronunciada em inglês, é homófona de urina. "O odor persistente do perfume 'intensifica a presença', permitindo mesmo que o seu portador continue presente após ter abandonado o espaço", escreve Bruce Hainley, em 1997, no ensaio "Model", a propósito desta obra de Warhol.

Um último exemplo, mais recente, é do Francesco Vezzoli, que criou o perfume "Greed", apresentado actualmente na nova sucursal da Galeria Gagosian, em Roma, através de, entre outras obras, um falso filme publicitário realizado por Roman Polanski e interpretado por Natalie Portman, Michelle Williams e o próprio artista, travestido, todos vestidos por Miuccia Prada. A nova fragância é apresentada num frasco que já faz parte desta história, dado ser o mesmo usado por Duchamp em "Belle Haleine - Eau de Voilette", sendo que Vezzoli reproduz no objecto uma imagem sua captada pelo fotógrafo de moda Francesco Scavullo. É assim, esta, uma das últimas obras de uma longa linhagem, onde a ambiguidade - de linguagem, sexual, comercial mesmo - surge como um dos elementos constitutivo dos trabalhos.

A nova obra de Fernando Ribeiro (Lisboa, 1963) pode ser aproximada desta herança artística, pois ela tem como ponto de partida um gesto, a difusão de um perfume num espaço expositivo. Contudo, esta situação tem várias camadas de leitura, a começar pelo título da intervenção "Untitled: Neons and Chanel", que, desde logo, transporta o espectador para um imaginário onde uma famosa marca de perfumes se mistura com um dos materiais mais glosados pela arte contemporânea - de Flavin a Vezzoli, passando por Nauman.

Quem entra pela primeira vez no A Certain Lack of Coherence, verá um espaço profusamente iluminado e com um odor quase insuportável a uma fragrância vulgar. Contudo, para quem não é um iniciado, as diferenças entre esta e as propostas anteriores ali mostradas são significativas, não só porque o habitual cheiro a mofo foi disfarçado, como porque agora as salas são reveladas na sua totalidade, vendo-se assim, em todo o esplendor, o caos de um lugar até aí bastante sombrio e húmido.

"No mundo realmente reinvertido, o verdadeiro é um momento do falso", escreve Guy Debord. Fernando Ribeiro, num cuidado trabalho de composição, torna explícita esta reflexão, pois, ao espalhar pelas salas um genérico - "Chanel" vendido a peso na Rua da Prata, em Lisboa -, confunde a natureza do lugar e também a experiência ali vivida.

Um produto de luxo é banalizado, certamente para corresponder aos sonhos de uma vida glamorosa. O alto transforma-se em baixo, em sucedâneo, perdendo-se assim uma ligação com o real. Um espaço degradado é camuflado, disfarçado, por um éter, fazendo-nos esquecer, por instantes, uma vida composta de contrafacções. Nesta mostra, a última de uma trilogia comissariada por Isabel Ribeiro, misturam-se os planos - o escatológico com o sublime -, tudo é travestido por um perfume de mulher. Um perfume vulgar, que pode activar memórias involuntárias, lembrar aquela expressão americana: "Something smells here...and it ain't Chanel nº 5."

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