Três homens e um berço

Num tempo em que se aplaude um cinema contaminado pela TV, é urgente defender aquilo que não tem lugar se não no campo acossado do cinema e da sala de cinema.

Os mesmos actores que em "Honra de Cavalaria" (o primeiro filme de Albert Serra) deram corpo a Quixote e Sancho (amadores, vizinhos de Serra no seu "pueblo" de Banyoles, na Catalunha) envergam agora, acompanhados de um terceiro, as vestes dos Reis Magos. Como a de Cervantes, outra narrativa "universal", aliás fácil de resumir (como diz Serra, são "três linhas na Bíblia"): três tipos que foram de muito longe até à Palestina, para adorar o Menino Jesus e deixar-lhe alguns presentes, e depois voltaram para casa.


Se, sem nenhuma perversidade especial, esta história é "contada" em "O Canto dos Pássaros", é evidente que o cineasta catalão encontra nela o mesmo tipo de "libertação" (uma libertação da própria narrativa) que encontrou no "Quixote", extraindolhe sobretudo uma série de "motivos" temáticos e visuais. O esforço físico, e a crença que conduz à sua superação, volta a ser essencial, e é o que Serra procura em todos aqueles planos (alguns, muito longos) em que os Magos atravessam desertos e escalam montanhas (grande "filme de caminhadas", até faz lembrar o "Satantango" de Bela Tarr), numa espécie de "tempo real" que respeita e se interessa em primeiro lugar pelo esforço dos actores (e Serra, que filmou 110 horas de material, procurou, segundo disse, aproveitar os "takes" em que os actores estavam "mais cansados").

O que é uma maneira (um pouco como na "Honra") de reforçar que "O Canto dos Pássaros" é um filme sobre a fé: em toda as incertezas da sua caminhada (genial o plano, nocturno e escuro como breu, em que os três hesitam sobre a direcção a tomar) o que move os Magos é a convicção de que no fim do caminho haverá alguma coisa a recompensar o seu esforço e a sua devoção. Por isso mesmo, é irresistível pensar que aquele plano (que lembra tanto os santos de Rossellini como o "Evangelho" de Pasolini) em que Serra mais arrisca uma encenação do "sagrado" (o plano da adoração propriamente dita, que a música de Jordi Savall que dá título ao filme transfigura) é um plano que lhes é oferecido, às personagens mas também, e isto é muito importante, aos actores. Mas motivos visuais, igualmente.

Serra referiu que este filme tinha uma "démarche" mais "pictórica" do que a "Honra", e nem precisava de o dizer. O preto e branco é um risco (o "esteticismo") mas é assumido pelo trabalho sobre a possibilidade da destruição da sua própria visibilidade - os planos nocturnos ou aquele, longuíssimo, em que os vultos negros dos Magos desaparecem (e reaparecem) na imensa profundidade de campo de um deserto, um gag puramente visual (há outros, mais físicos e mais verbais, muito divertidos: este Magos são primos dos Marx). Mas visual no contacto com a abstracção, como se fossem manchas desenhadas a carvão a lutarem contra o seu apagamento.

Como a "Honra", e vale a pena terminar referindo isto, "Canto dos Pássaros" usa a pequena câmara digital com que foi filmado de um modo que entra em choque com o seu uso mais expandido - ao serviço de um olhar rigoroso, composto, fixo, em vez da pulverização desse olhar num caos de permanente mobilidade. Como disse uma vez Pedro Costa, "chama-se a isto ''resistência''". E num tempo em que se cantam os "híbridos", e se aplaude um cinema contaminado pela televisão, é urgente defender aquilo que de "híbrido" não tem nada, que não tem lugar se não no campo acossado do cinema e da sala de cinema, e que não responde a mais nada para além da sua própria tradição: reencontrar os cineastas "primitivos", disse Serra. Como bem sabemos, o mais moderno dos sonhos, ou o sonho dos mais modernos.

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