Silêncio, que se vai pensar a paisagem

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Paraíso turístico e inferno urbanístico, as Canárias são um lugar improvável para uma bienal de arquitectura, arte e paisagem. Tinha tudo para dar certo e deu errado. As ilhas querem a sua paisagem natural de volta

"É sempre desejável ver a beira do precipício antes de cair nele. Gritar depois é muito fácil."

Esta sentença do escritor de ficção científica Isaac Asimov encontra-se numa exposição da II Bienal das Canárias, Arquitectura, Arte e Paisagem, em Las Palmas, que, definitivamente, já caiu no precipício. É um daqueles lugares onde paraíso turístico quer dizer inferno urbanístico, ocupação absoluta e desordenada do território, apesar de ter tudo para dar certo: uma baía natural, praia no centro da cidade. "Se me pedissem um sítio do mundo para fazer uma cidade, possivelmente elegeria Las Palmas porque reúne todas as condições ideais para ser uma cidade belíssima", diz o arquitecto Juan Manuel Palerm, 51 anos, director da II Bienal das Canárias.

Vista da beira do precipício - o 24º andar panorâmico de um hotel, onde o arquitecto fala ao P2 -, Las Palmas, a capital de Gran Canaria, tem mais encanto (vista para o mar e muito céu), mas quando se mergulha lá em baixo, onde a cidade se espraia como um vírus incontrolável, a densidade urbanística é esmagadora. Parece o lugar mais improvável para se fazer uma Bienal de Arquitectura, Arte e Paisagem, ou, como diz o ambicioso press release, "o epicentro do debate internacional sobre a paisagem". Mas Palerm, um pançudo jovial, olha para a cidade lá em baixo como se fosse um laboratório em potência.

"Las Palmas é uma cidade que foi crescendo como um mecanismo, mas esqueceu-se da natureza e do território. Aqui produziram-se as contradições que se verificam em toda a Europa, mas, como estamos numa ilha [no caso da Gran Canaria] e não num continente, temos a capacidade de observação mais aguda." E quanto à sugestão de que as Canárias - ou, pelo menos Las Palmas, a maior cidade do arquipélago - não são nenhum exemplo de arquitectura, Palerm garante que esta é "uma das regiões espanholas onde o nível de arquitectura é dos melhores". Confirma-o a Torre Woermann, que segundo os seus arquitectos, Iñaki Ábalos e Juan Herreros, "cabeceia, admirando a paisagem que contempla". Confirmam-no "todas as últimas revistas internacionais e nacionais de arquitectura", garante Palerm. "Nós, canários, estamos em toda a parte."

"O que se passa é que a boa arquitectura não faz uma boa cidade." A má arquitectura também não. "Também não, mas as pessoas habitam-na", remata.

De resto, esta não é uma bienal de arquitectura, salienta o seu director. "É uma bienal que tenta criar uma reflexão sobre a paisagem contemporânea" e que Palerm quer que seja o mais abrangente ou multidisciplinar possível. Isso nota-se nas várias exposições simultâneas que inauguraram há dias em duas ilhas, Gran Canaria e Tenerife: mais do que arquitectos e urbanistas, são dominadas por trabalhos de artistas de várias áreas. O músico David Sylvian fez uma instalação sonora numa sala cavernosa, com música ambiental, há pinturas de Sean Scully e, entre outros, uma exposição de fotografia com representações da periferia (tema premente, diz a comissária Rosa Olivares, dada "a situação complicada da paisagem nas ilhas").

Se as Canárias têm "um dos níveis mais altos da arquitectura contemporânea espanhola", o que mais tem faltado, diz Juan Manuel Palerm, "é entender qual é a relação com o meio ambiente, com a natureza, com um território em equilíbrio". "Um território como as Canárias não se pode fazer só através do urbanismo", nota o arquitecto. São necessárias, defende, novas filosofias de ocupação do território. "Tem de se criar uma nova sensibilidade para compreender este território, porque as normas urbanísticas que herdámos do século XIX são obsoletas e não trazem nada."

Emendar o que está feito

A partir dos anos 60, com o crescente fenómeno do turismo de massas, as Canárias passaram de uma economia rural a uma sociedade urbana e de serviços. Graças ao seu clima subtropical, o arquipélago goza de temperaturas invejáveis ao longo do ano ("18 graus, para nós, é frio", diz um jovem motorista) e época alta é um conceito eterno por aqui. O turismo tem sido a principal fonte de riqueza nas últimas duas décadas e a inexistência de uma estratégia de ocupação do espaço abriu caminho a uma explosão imobiliária de baixa qualidade arquitectónica. ^

Mas essa é uma situação que se quer reverter, até por vontade política. Na conferência de imprensa que antecedeu a visita guiada da bienal aos jornalistas, o presidente do Governo das Canárias, Paulino Rivero, anunciou que em Abril o Parlamento regional deverá aprovar uma lei que pretende incentivar a renovação e reabitação do património imobiliário já existente e impedir o consumo de mais solo dedicado ao turismo.

O objectivo, sublinhou Rivero, é "crescer em qualidade e não quantidade" e "potenciar um património natural" com a "riqueza e diversidade paisagística de um autêntico continente". O presidente do Governo regional fez mesmo questão de notar que se trata de "leis próprias, e não de leis impostas por Espanha". E lançou os números do orgulho: 43 por cento do território nas Canárias está protegido por leis, enquanto na Espanha peninsular a proporção é de 10 por cento e, no resto da Europa, de três por cento.

O conceito central da II Bienal das Canárias é o silêncio, que pressupõe uma perspectiva crítica sobre as transformações do território - e muitas das obras expostas têm implícito um olhar nostálgico, sugerindo uma espécie de retorno à natureza ou à paisagem natural. Silêncio, diz Juan Manuel Palerm, porque "talvez seja conveniente, antes de fazer alguma coisa, pensar um pouco mais; não podemos cair nos mesmos erros."
Os organizadores pretendem que a bienal seja a base de um laboratório contínuo de investigação da paisagem da Macaronésia, que engloba mais três arquipélagos, além do das Canárias: Açores, Madeira e Cabo Verde. Foi a pensar neles que se foi buscar Asimov e a sua citação sobre quedas no precipício: é um aviso a outras ilhas que queiram reproduzir o paraíso turístico que existe nas Canárias.

"Enquanto as Canárias precisam urgentemente de alternativas ao desenvolvimento desenfreado das últimas décadas que já maltratou boa parte das suas paisagens, Cabo Verde está desejoso de copiar esse modelo sem ter demasiado em conta os custos ambientais que pode implicar para a singular fragilidade paisagística do seu território", lê-se no texto de uma das exposições.

O P2 viajou a convite da II Bienal das Canárias

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