O arquitecto é um coleccionador de memórias

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Um pavilhão de exposições de mobiliário transformado em desafio à afirmação da arquitectura num território normalmente hostil a esta arte valeu a Nuno Brandão Costa o mais importante prémio português nesta área. Visita guiada pelo arquitecto ao Edifício Viriato, implantado em plena terra da indústria dos móveis

Como é que um edifício em betão pode fazer a diferença num território indiferenciado em que o betão, e a chapa industrial, são os principais materiais de construção? A percepção desta virtualidade não foi certamente estranha à decisão do júri do Prémio Secil de Arquitectura 2008 de distinguir o projecto que Nuno Brandão Costa (n. Porto, 1970) desenhou para o Edifício Viriato, um pavilhão de exposições de mobiliário em Recarei, no concelho de Paredes.

Chega-se a este edifício em plena zona industrial da "terra dos móveis" através das estradas suburbanas rasgadas entre eucaliptos e campos agrícolas cansados. Sucedem-se aí as fábricas e os armazéns de mobiliário, normalmente identificados com o nome próprio do proprietário, ancestral ou actual. Inesperadamente, no cotovelo de mais um entroncamento rodoviário, um edifício irrompe na sua elegância austera de betão e surpreende o nosso olhar na maneira como se distingue da matriz industrial do lugar, e no brilho com que reflecte a luz do sol.

Nuno Brandão Costa, que nos guia na visita à sua obra, começa por desdramatizar a eventual surpresa. "Os sítios têm todos as suas virtualidades. Não é por serem aparentemente menos interessantes que deixam de nos mobilizar ideias."

O Edifício Viriato é um pavilhão de exposições - o proprietário chama-lhe show room, pela mesmo razão que substituiu a velha designação de Móveis Viriato pela actual de Viriato Hotel Concept, internacionalização oblige para uma empresa que trabalha principalmente para o estrangeiro e que possui na sua carteira de clientes cadeias hoteleiras como o Sheraton, Meridien, Radisson ou Club Med. Foi construído nos últimos dois anos como acrescento às instalações da velha fábrica Móveis Viriato, actualizando-as com novas valências administrativas e de exposição (de móveis e de tecidos), mas também de atelier, copa e sala de reuniões.

O arquitecto portuense instalou tudo isto num edifício pequeno, e quase discreto, de mil metros quadrados de área, distribuídos por três pisos - na verdade, são apenas dois, já que o rés-do-chão se mantém como lugar de estacionamento ao ar livre.

Esta foi, aliás, uma das exigências do programa para o prédio, e que levou Nuno Brandão Costa a pôr em prática as suas memórias de arquitecto "coleccionador" de influências diversas. O edifício suspenso do chão vem tanto da lição modernista de Le Corbusier como da arquitectura brasileira de Óscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha, ou da moda americana dos anos 1950/60 de deixar sob as casas espaço de estacionamento para o automóvel, quando este passou a fazer parte dos equipamentos domésticos. "Um arquitecto é sempre um coleccionador de memórias, não trabalha a partir do zero", diz Nuno Brandão Costa, que também não renega a lição da Escola do Porto, onde ele próprio aprendeu e agora ensina - é professor de Projecto na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.

"Uma herança muito forte"

Fernando Távora, Siza Vieira, Eduardo Souto Moura (os dois últimos, anteriores vencedores do Prémio Secil), dos quais recebeu aulas, "estão sempre presentes e são uma herança muito forte", diz, para justificar algumas das soluções visíveis numa carreira que conta já uma década e uma dezena de obras feitas, e que afirma Nuno Brandão Costa como um jovem autor de "uma obra consistente e poderosa", como realçou o júri do Prémio Secil, e "um dos mais poderosos arquitectos da sua geração", como anteontem escrevia no PÚBLICO a crítica de arquitectura Ana Vaz Milheiro.

Ainda que não assuma directamente esse "rótulo" de membro da Escola do Porto - "é algo que não me cabe a mim dizer ou discutir" -, o arquitecto não esconde a herança de um Távora ou de um Siza. Do primeiro, lembra "o lado humanista" e o casamento feliz que conseguiu fazer, "principalmente na primeira fase da sua obra, da tradição com a modernidade", e que ele próprio reflectiu no trabalho de restauro e modernização da Quinta de Bouçós, em Valença.

Siza Vieira é alguém que Nuno Brandão Costa também habita muito, em sentido quase literal: é professor numa faculdade desenhada por ele e tem o seu atelier instalado, desde há três anos, no Bairro da Bouça, um projecto de Siza na zona da Boavista, no Porto.

Mas há outras fontes e outras lições que vieram de mais longe, no percurso do Prémio Secil 2008: as da dupla suíça Herzog & de Meuron, cujo atelier Nuno Brandão Costa frequentou entre 1991-93, num estágio quando ainda era estudante. "Foi uma experiência que me marcou muito. Nessa altura, eles não eram ainda muito conhecidos; estavam numa fase de grande reacção ao pós-modernismo, e construíam uma arquitectura que se baseava na tradição local suíça e, ao mesmo tempo, dava uma resposta muito abstracta à realidade", recorda.

Dos arquitectos suíços, o Edifício Viriato denota influências nas suas composições geométricas e arquitectónicas, admite Nuno Brandão Costa. De Siza, também é possível ver nele o jogo das grandes superfícies brancas, ora opacas, ora abertas em amplas janelas, com soluções de luz aproveitando os ângulos de uma estrutura trapezoidal, que dialoga simultaneamente com o alinhamento da velha fábrica geminada e com a linha de fuga da rua que passa ao lado.

Este diálogo com a realidade envolvente, Nuno Brandão Costa vai poder prolongá-lo através de um novo edifício, com área prevista de 7000 m2, que ele está já a projectar para nova ampliação da Viriato Hotel Concept. Nesta empresa, pensa-se que a melhor forma de desafiar a crise económica actual "é investir e apostar no futuro", diz Carla Rocha, directora comercial e filha do proprietário da fábrica, que actualmente dá trabalho a 140 trabalhadores directos e a três centenas indirectamente.

"Os arquitectos, sobretudo os de formação mais generalista como eu, têm tendência para encarar os projectos todos da mesma maneira, independentemente do programa e da escala." Mas um cliente que apresenta "um programa ambicioso, claro e inteligente", diz, é sempre a melhor forma de enfrentar um território à partida pouco favorável à arte da arquitectura, como o é uma zona industrial.

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