O segredo

A presente edição de "O Livro do Cortesão", de Baldesar (dantes aportuguesava-se e escrevia-se Baltasar) Castiglione (Mântua, 1478-Toledo, 1529), é publicada no âmbito de um série de traduções patrocinada pela Comissão da União Europeia para a Educação, Audiovisual e Cultura e que visa "contribuir para o melhor conhecimento por parte dos leitores portugueses de alguns dos mais importantes clássicos da literatura europeia". "A Língua Posta a Salvo", de Elias Canetti, "Wallenstein", de Schiller, e "Guzmán de Alfarache", de Mateo Alemán, são os outros livros desta série já publicados pela Campo das Letras.

"O Livro do Cortesão", do cortesão, diplomata e letrado humanista Castiglione, é apenas um dos mais afortunados e influentes livros da Renascença italiana e teve primeira publicação no ano de 1528, em Veneza. Esta primeira edição, a crer na dedicatória inicial a "dom Miguel da Silva, bispo de Viseu", terá sido apressada por curiosa mas não incomum circunstância. Tendo oferecido uma cópia a Vittoria Colonna, marquesa de Pescara e assinalável poeta, Castiglione estava em Espanha como enviado do Papa Clemente VII (morreria vitimado pela "peste", em Toledo) quando soube que a marquesa, "contra a promessa sua", mandara transcrever parte do livro, que já circulava "nas mãos de numerosas pessoas". O receio de que imprimissem a obra sem o seu aval apressou Castiglione, que afirma ter preferido que ele fosse "insuficientemente corrigido" pela sua mão "do que totalmente dilacerado pela mão de outrem". A obra foi um sucesso em toda a Europa, um verdadeiro "bestseller" à escala de Quinhentos, teve dezenas de edições e foi traduzido para meia dúzia de línguas ao longo do século XVI. Um século depois é ainda possível rastrear a sua influência em autores como o espanhol Baltasar Gracián ("O Discreto" e "Oráculo Manual e Arte da Prudência") ou o português Rodrigues Lobo ("Corte na Aldeia").

O que é e de que trata a obra de Castiglione? Se nos tentassem as analogias forçadas e espectaculares, poderíamos dizer (correndo o risco de ver a obra de Castiglione ir parar à secção de "Livro prático" das nossas modernas e expeditas livrarias) que "O Livro do Cortesão" é uma espécie de livro de "auto-ajuda", um manual de "boas maneiras", um guia para "fazer amigos e conquistar pessoas" influentes, um manifesto moral e político. Mas tudo isto em maior do que é costume, claro, e bem escrito. Será, porém, mais justo e apropriado dizer que "O Livro do Cortesão" é excelente prosa doutrinal cívica, estética e moral, um tratado didáctico-filosófico sobre as qualidades e os deveres do "perfeito" cortesão, o por assim dizer "cidadão" da corte, o próximo do soberano ou do príncipe (é sobre as práticas e a responsabilidade das elites ou das "forças vivas", dir-se-ia hoje).

Como não podia deixar de ser (considerada a época em que o autor vive e escreve), os modelos de Castiglione são os clássicos greco-latinos: se Platão escreveu sobre a república ideal, Xenofonte sobre o rei ideal e Cícero sobre o orador ideal, ele escreverá sobre o cortesão ideal. Castiglione também define o seu livro como "um retrato" da corte de Urbino no início do século XVI, mas tornar-se-á evidente que, mais do que uma descrição eventualmente "realista", o seu livro é um programa, uma "moção" sobre "de que maneira deve ser aquele que merece o nome de perfeito cortesão", é a poética do ideal do homem de corte renascentista, o humanista comprometido com a acção ("Numa mão sempre a espada e noutra a pena", diria Camões).

Formalmente, o livro é composto por quatro extensos diálogos que decorrem em outras tantas noites sucessivas na corte do duque de Urbino, sendo todos os interlocutores historicamente determinados: Ottaviano Fregoso, Pietro Bembo, Bernardo Bibbiena, Aretino, Ludovico da Canossa, etc. As despesas da conversa recaem em cada diálogo sobre um conviva em particular, funcionando as intervenções dos interlocutores e do narrador como espevitadores ou pausas retóricas. Abordar-se-ão, sucessivamente, as qualidades físicas, intelectuais e morais que deve ter o perfeito cortesão - pois dos mais comezinhos e mundanos (a roupa e o cabelo, por exemplo), aos mais elevados e filosóficos, nenhum aspecto é esquecido -, a perfeita cortesã e o próprio príncipe servido (por vezes de maneira tacticamente cínica, dir-se-á) por esses cortesãos ideais.

Tendo este livro evidente interesse histórico e documental para leitores "especializados", poder-se-á perguntar se tem ainda interesse para o "leitor comum" de hoje. A resposta é claramente afirmativa e esse leitor comum não deixará de se poder "identificar" com certo optimismo combativo e renovador (a crítica da ideia de que o passado foi sempre melhor do que o presente, por exemplo, ou a própria afirmação, tão nossa contemporânea, da bondade do saber, da educação e do virtuoso exemplo), não deixará de simpatir com a leveza com que se trata de temas por vezes graves, com a ironia e o humor de Castiglione (no segundo diálogo há mesmo uma compilação de episódios e exemplos anedóticos e facetos).

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