A meio-caminho do excesso

Do "excesso", que era sempre uma manifestação passional, fica só a gestualidade, um faz de conta

Não teríamos palavras paradescrever o quanto gostamos docinema de Schroeter, dos seusbricabraques que são uma maneirade partir em encalço da ideiaromântica de uma beleza nãonecessariamente "pura", porque asua natureza é sempre compósitamas, até por isso, "total", comovemos no mais artesanal (e tambémo mais convulsivo, mais vulcânico)período da sua obra, o que vai de"Eika Katappa" (1969) a "O Rei dasRosas" (1986); e da sua maneira deprestar devoção às actrizes(Huppert, Carole Bouquet) ecantoras de ópera (Callas, AnitaCerquetti) que mais admira, sejalevando uma actriz ao ponto deincandescência (como Huppert em"Malina") seja transformando adeclaração de amor numrecolhimento silencioso econtemplativo (como com Cerquetti,Bouquet e ainda outras em"Poussières d''Amour").

Talvez por isso incomoda-nospouco confessar que nos faltam aspalavras certas para descrever o queé que nos decepciona em "Noite deCão", adaptação de um romancedo uruguaio Juan Carlos Onetti quemarca o regresso de Schroeter àactividade depois de um interregno(desde "Duas", 2002) provocado poruma doença grave. A "linearidadenarrativa", que Schroeter contouter-lhe sido expressamente pedidapelo produtor (Paulo Branco)?Schroeter já foi, mesmo que àsua maneira, "linear"noutras ocasiões, isso nãodeveria ser um problema;mas um pouco, sim:frequentemente sentimos a"linearidade" (sem a qual ahistória de Onetti, fazendoda continuidade "jusqu''aubout de la nuit" a sua razãode ser, perderia sentido) aaplanar rugosidades quemereciam ser tacteadasde outra maneira. Mas maisimportante do que isso nosparece ser uma certa deficiênciafigurativa, qualquer coisa queficou a meio-caminho: Schroeternunca filmou "a pintura","a música", "a literatura",queimou-as sempre como lenhanuma alegre pira de cujaschamas nascia um dos maisinimitáveis cinemas das últimasdécadas. Aqui, desde o primeiroplano (a imagem de um quadrode Ticiano), temos a sensação deque Schroeter filma, à vez, agoraa "pintura", depois a "música", eassim sucessivamente. Do "excesso",que era sempre uma manifestaçãopassional, fica só a gestualidade,uma espécie de faz de conta.

Curiosamente, gostamos mais dofilme à medida que ele se aproximado fim e se vai "desnudando",concentrando-se no essencialque é a relação da personagem dePascal Greggory com o seu passado(abundante) e o seu futuro (escasso).

E o último plano (o porto, o barco),muito longo, é o melhor em todo ofilme - já não há nada para "fazer deconta", nem às personagens nem aSchroeter. Mas é tarde demais para onosso entusiasmo. Podemos apenasdesejar que "Noite de Cão" seduzaos espectadores neófitos para adescoberta da obra de Schroeter,e desejar-lhes uma boa viagem poresse aventuroso caminho.

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