Em nome de todos nós

Max Aub (1903-1972) não integra a canónica "Antologia do Humor Negro" de André Breton (que é dado como teorizador do "género"), mas devia integrar. Os seus "Crimes Exemplares" - e esta qualificação, a condição ambivalentemente "exemplar" daquilo que se narra, tem história na literatura espanhola desde Cervantes até Vila-Matas (ou Sophia de Mello Breyner, em português) - não são nada estranhos àquele exemplo, "grosseiro mas suficiente", que Breton foi buscar a Freud - o do condenado que, levado à forca numa segunda-feira, comenta: "Aqui está uma semana que começa bem." Pois o humor negro é sobretudo, como dizia o grande surrealista, "o inimigo mortal da sentimentalidade".

Aliás, e por acasos bem objectivos, os "crimes" de Aub foram escritos e pela primeira vez publicados (primeiro dispersamente, depois em volume, em 1957) no México, país que era ou foi para Breton a "terra prometida do humor negro". Os acasos por que Max Aub foi parar ao México foram dois: o franquismo em Espanha e o nazismo em França. Falta-nos dizer que o "escritor espanhol e cidadão mexicano", como Aub se auto-definiu pelo final da vida, coleccionou nacionalidades e exílios: filho de pai alemão e mãe francesa, nasceu em Paris; foi para Espanha com 11 anos, adquirindo a nacionalidade espanhola dois anos depois (e também a língua, que fez sua); mas perdida a Guerra Civil (ele esteve do lado dos Republicanos) regressou a França, em 1939; foi preso e depois deportado para a Argélia, de onde escapou em 1942, para o México, seu exílio final. Publicou algumas dezenas de livros (ficção narrativa, poesia, teatro, ensaio).

"Crimes Exemplares" é o assassínio considerado como uma das artes fatais do quotidiano. Talvez uma questão de acaso e oportunidade. "Matei-o porque tinha a certeza de que ninguém me estava a ver" - conta um dos "criminosos" de Aub. Há muitas desrazões para assassinar e todas elas são (por assim dizer) boas, se não houver premeditação. Apresenta-se o livro, portanto, como um catálogo de "confissões espontâneas" de assassínios ingénuos e até mesmo líricos, alguns, arrebatados, absurdos, risíveis, despropositados. O livro, que tem variado quanto ao número de textos e respectiva ordenação, inventaria 87 "crimes" na presente edição. O juízo, moral ou legal, que possa ir na palavra "crimes" é puro equívoco. O "bem" não tem morada certa: "Nunca vos apeteceu assassinar um cauteleiro quando eles começam a chatear e não largam, a suplicar? Eu fi-lo em nome de todos nós." E uma outra voz pergunta-nos (supomos que retoricamente): "Nunca matou ninguém por tédio, porque não sabia o que fazer?" (o belo "acto gratuito" de tão alta ascendência literária). As citações evidenciam a principal característica destes textos: uma extrema brevidade, que obriga a uma narração secamente elíptica e como que indirecta. Estas micronarrativas de Aub desafiam as de Augusto Monterroso (ou o inverso). Cada uma delas, funcionando embora autonomamente, mantém alguma dependência da macronarrativa do conjunto. Em alguns casos, a interdependência entre um texto e outro(s) é mesmo sublinhada pela ordem que assume no conjunto.

"Crimes Exemplares", de Max Aub, já é (e ainda bem) um título clássico e recorrente (foi mais do que uma vez reimpresso) do catálogo da editora Antígona, que o publicou pela primeira vez há mais de um quarto de século. Mas a presente e pródiga edição é uma novidade: vale também como objecto gráfico por assim dizer "exemplar". Trata-se de uma reprodução da edição feita em 2001 em Valência, Espanha, pela Media Vaca, uma editora especializada em livros ilustrados e "atípicos". O de Aub tem 32 ilustrações (uma delas sendo um retrato do autor) de outros tantos artistas espanhóis. E todas elas, note-se, estão nas páginas ímpares.

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