Tirar o retrato na Foto Beleza

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Espólio de casa centenária do Porto foi adquirido por um empresário e coleccionador, que com ele lançou o Espólio Fotográfico Português. É uma base de dados com que Mário Ferreira quer fazer um retrato do país.

Tirar o retrato foi uma prática que começou a generalizar-se na sociedade portuguesa ainda no final do século XIX. Nas primeiras décadas do século seguinte, o acesso à fotografia banalizou-se, e "mesmo as famílias mais humildes dos locais mais recônditos puderam tirar o seu retrato, deslocando-se a qualquer núcleo urbano mais próximo de pequena dimensão, uma vez que os fotógrafos profissionais espalhavam-se já praticamente por todo o país".

Esta descrição do historiador Fernando de Sousa serve para contextualizar o lugar que a Fotografia Beleza ocupou no Porto e no Norte, desde que em 1907 foi instalada na Rua de Santa Teresa, na Baixa da cidade, até à década de 60, período durante o qual foi procurada por grande parte da população da região para "tirar o retrato".

O espólio desta casa centenária foi adquirido há meia dúzia de anos por Mário Ferreira, um empresário do sector do turismo que tem a fotografia como hobby, desde que, com apenas sete anos, recebeu como prenda do pai uma câmara Zenith. "Achei piada àquilo e passei a tirar fotografias a toda a hora." O gosto pela fotografia cresceu com ele e evoluiu para o coleccionismo desta arte e dos livros com ela relacionados.

Mário Ferreira proprietário da empresa Douro Azul e anunciado como o primeiro português a ir viajar no espaço é actualmente um dos maiores coleccionadores portugueses de fotografia, com presença notada nos leilões do sector.

A compra da Fotografia Beleza foi-lhe proposta, no início dos anos 2000, pelo proprietário daquela casa, por via de um consultor que sabia do seu gosto pela fotografia. Quando entrou nas instalações, já bastante degradadas (e actualmente fechadas), da Foto Beleza, Mário Ferreira deparou com uma impressionante colecção de mais de meio milhão de chapas em vidro, a grande maioria das quais eram naturalmente retratos. "Cheguei lá e achei interessantíssimo", recorda. E mais satisfeito ficou quando descobriu que as chapas eram acompanhadas dos respectivos livros de registos, que estavam acumulados debaixo de umas escadas, onde eram vistos como "lixo"...

"Comprei tudo: a colecção, as máquinas (mais de 20, e algumas delas com uma qualidade fabulosa, muito superior às digitais actuais), a sociedade proprietária da casa Beleza; e quero também comprar a casa", diz o coleccionador, que está em negociações "que estão a ser difíceis" com o senhorio para esse efeito. O seu objectivo é transformar a velha Foto Beleza num "museu vivo da fotografia", onde as pessoas "possam tirar fotografias à sua família com estas máquinas antigas".

Um retrato de Portugal

Enquanto espera pela concretização desse projecto, com o espólio da Fotografia Beleza (600 mil imagens, das quais metade está já digitalizada e em fase de identificação) Mário Ferreira avançou para a criação de uma base de dados, em colaboração com Fernando de Sousa e com o Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade (o Cepese, fundado por este historiador da Universidade do Porto em 1990) e o apoio do programa comunitário POS-Conhecimento.

Deram-lhe o título Espólio Fotográfico Português (EFPhttp:// www.espoliofotograficoportugues.pt/), e este banco de imagens irá acolher outras colecções de Mário Ferreira e de outros coleccionadores ou proprietários de velhas fotografias que queiram associar-se ao projecto. Em vista está, para já, a entrada no EFP do espólio da Companhia Real Vinícola.

O lançamento do site ocorreu no final de Dezembro, no Porto, em simultâneo com uma volumosa e bem cuidada publicação que dá a conhecer a riqueza e variedade do espólio da Foto Beleza.

Fernando de Sousa diz tratar-se de "um verdadeiro retrato de Portugal do século XX", incidindo principalmente no Porto e no Norte, mas estendendo-se também a outras cidades e paisagens do país, que durante várias décadas foram percorridas e captadas pelos operadores daquela casa.

Maria do Carmo Serén, historiadora da fotografia e autora de um dos textos do livro (os outros co-autores, para além de Mário Ferreira e de Fernando de Sousa, que coordena a publicação, são Francisco Queiroz e Paula Barros), nota que a importância maior do espólio da casa Beleza está no retrato, que representa mais de 90 por cento das chapas, mas cuja identificação não está totalmente assegurada, já que muitos dos nomes nos 365 livros de registos são do cliente e pagador do trabalho e não necessariamente do retratado. Serén diz ainda que a qualidade estética do retrato é mediana. "É a normal de um estúdio dessa época." Mas realça que o conjunto permite "fazer um retrato sociológico da época do salazarismo no nosso país".

Confirmando a alta percentagem de retratos na colecção, Fernando de Sousa diz que, mesmo assim, há toda uma componente documental "são mais de 12 mil chapas com paisagens rurais e urbanas" que não pode ser desvalorizada.

E ressalva a importância da reconstituição que a partir dela se pode fazer das vindimas no Douro e, principalmente, da arqueologia industrial do país.

A compra deste espólio da Fotografia Beleza chegou a ser proposta ao Centro Português de Fotografia (CPF), em 2001, o que não veio a verificar-se. Silvestre Lacerda, actual director do Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (IAN/TT), que tutela o CPF, confirma a existência de uma proposta com aquele objectivo, mas que "não chegou a ser formalizada, nem a ser devidamente avaliada".

Ressalvando que conhece a colecção apenas pelo que viu na Internet, o responsável do IAN/ TT diz que este banco de dados carece ainda "de algum trabalho de carácter técnico e arquivístico".

Mas realça a importância da iniciativa como banco de imagens que pode ajudar a identificar uma certa realidade da sociedade portuguesa do século passado.

Silvestre Lacerda anuncia ainda que o site EFP "será referenciado no portal de arquivos" que o IAN/TT está a preparar.

A identificação do espólio da Foto Beleza que está armazenado na sede da Douro Azul continua, entretanto, a ser feita, sempre com o apoio do Cepese, por uma equipa de sete técnicos, no Porto.

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