Crime sem castigo

Um filme sobre a corrupção moral, no ponto em que se cruza com a lassidão existencial.

Depois de "Longínquo" e doexcelente "Climas", que eram,sobretudo o segundo, crónicasintimistas sem muita coisa à volta,Nuri Bilge Ceylan parece querer, em"Os Três Macacos", abrir a portapara deixar entrar mais "contexto".Sendo um filme sobre diversasformas de corrupção e demissãomorais, no ponto em que se cruzamcom uma lassidão existencial, oquadro intimista em que sedesenrolam surge polvilhado poralguns sinais que o ligam a umdiscurso, mais ou menos elíptico,sobre a realidade político-socialturca. Isto é feito, a começar, pelanarrativa, que assenta num negóciopouco canónico: um homem, umpolítico que não quer pôr em perigouma iminente eleição, atropela umapessoa e pede ao motorista (quenem seguia no carro) para assumir aresponsabilidade, prometendo-lheuma "boa maquia" em troca de unsmeses na prisão. Um pequenosacrifício agora para um grandebenefício depois - por acaso ou não,isto rima o discurso favorito demuitos políticos de ontem e de hoje(e há uma cena estranha, em que ohomem tenta convencer a mulherdo motorista de que tudo correrábem, e o diálogo se ouve sem que elemexa a boca, como se estivesseempolgado com um discursoproferido apenas mentalmente). Aque acresce o pormenor, numa cenadoméstica, de se ouvir, pelatelevisão, a notícia da eleição deErdogan - podia ser uma notíciaqualquer irrelevante, mas não, é anotícia da eleição do primeiroministroda Turquia. Pareceevidente que Ceylan quer que oespectador (sobretudo, e isto nuncaé uma sensação muito agradável, oespectador "internacional") pensenum "contexto".

Para o deixar, depois, a trabalharsubliminarmente. "Os TrêsMacacos" - como esta introdução ànarrativa deixa adivinhar, são os trêsmacacos clássicos, "não ver", "nãoouvir", "não dizer" - processa-secomo descrição de umadesagregação familiar. Hacor, amulher do motorista, envolve-secom o homem que o mandou para aprisão; e o filho, Ismail, sedesorientada já estava maisdesorientado fica. Quando Eyup (omotorista) regressa a casa (uma casacom uma bela vista sobre o Bósforo)não se vislumbra nenhum benefícioevidente para o seu sacrifício, restacontemplar os resultados dotrabalho feito pelo germe dacorrupção que a política inoculounaquela família. E Eyup ainda teráocasião de repetir, a outrapersonagem, o mesmo discursosobre o pequeno sacrifício e a boamaquia - como se o processo dealijamento de responsabilidadesfosse uma dinâmica imparável.

Incidências narrativas à parte,"Os Três Macacos" é bem menosimpressionante do que "Climas" (e oseu romantismo áspero e arruinado)e mesmo do que "Longínquo" (e asua quase burlesca melancolia). Nãopossui um centro tão determinado,parece sempre mais disperso (nãofalámos de um pequeno "fantasma"que assombra a família de Eyup), umpouco mais mole. Mesmo os(muitos) planos fixos são demasiadasvezes apenas planos "bonitos", origor da composição parecendoobedecer a um propósito decorativo(sublinhado, aliás, pelo véu verdemusgo,muito húmido, de que afotografia se serve com algumexibicionismo). Esta incursão deCeylan no melodrama arrefecido(em "Climas" o que se filmava era aimpossibilidade melodramática)resulta mais convencional, menossurpreendente e certamente menosmarcante. A melhor ideia, m toquede telemóvel com uma cançãopopular turca, qualquer coisa com"espero que o teu coração derretacomo uma vela", que Ceylan repeteumas quatro vezes e numa delaspara arrancar a melhor cena dofilme, é de resto uma ideia demelodrama clássico: fazer umacanção exprimir todas as emoçõesque as personagens têm bloqueadas.

Por coisas como estas, pelos actores(em particular Hatice Aslan, aprotagonista feminina), por algunsplanos (o último, mansamenteapocalíptico), e apesar das reservasque exprimimos, continuainteiramente a valer a penao encontro com NuriBilge Ceylan.

Sugerir correcção
Comentar