2003

Foto

MÚSICA/INTERNACIONAL
Escolhas de Fernando Magalhães, João Bonifácio, Miguel Francisco Cadete, Nuno Ferreira, Nuno Pacheco, Rui Portulez e Vítor Belanciano

1. OUTKAST
Speakerboxxx / The Love Below
Arista, distri. BMG 1

Sinal dos tempos: alguma da música mais audaciosa de hoje habita com assiduidade os "tops". A música negra, personificada pelo r&b e hip-hop, revelou-se como a maior força do mercado em inúmeros países, com destaque para os EUA. Só no seu país de origem os OutKast venderam mais de 16 milhões de discos. Um número impressionante, principalmente se tivermos em atenção que Andre 3000 e Big Boi optaram, ao quinto registo, por um invulgar álbum duplo composto por dois discos a solo. Mas o conteúdo é ainda mais bizarro e apaixonante. "Speakerboxxx" é fraseados rap, configurações rítmicas electrónicas, climas luxuriantes, psicadelismo. É hip-hop tecnológico. "The Love Below" é romance, batidas sincopadas, ambientes sensuais, soul cósmica, descontruções jazzísticas e melodias pop. Canções clássicas de dimensão experimental. Em ambos os casos, digerem infl uências (Prince, Stevie Wonder, De La Soul, Aphex Twin, Funkadelic ou Sun Ra), abordam fi gurinos clássicos, exploram a tecnologia, sorriem com os ícones da América e atribuem a tudo uma roupagem exuberante e futurista.

2. ROBERT WYATT
Cuckooland
Hannibal, distri. Edel

Wyatt parte o jazz e a pop aos bocadinhos, pedaços de um espelho que reflectem parcelas de uma verdade mais vasta. Naipes de sintetizadores girando no ocaso, saxofones do princípio do século, valsas da Europa romântica onde Miles Davis corteja Juliette Gréco, os habituais disparos contra o imperialismo e a injustiça, tudo encaixa no lugar certo. Por mais que Wyatt afi rme estar "Neither here.." e "...Nor there". Os cucos são aves solitárias.

3. ED MOTTA
Poptical
Trama, distri. Universal

Depois do semi-experimental "Dwitza", Ed Motta assina um álbum maduro, inteligente, criativo e sofi sticado. Nas suas múltiplas referências, do cinema às artes plásticas, à mistura com doses moderadas de jazz, funk, rhythm'n'blues, samba e bossa nova, "Poptical" revela o crescente apuro a que o cantor sujeita a sua vertente de "soul-man" brasileiro, sem perder a ambição intemporal e cosmopolita.

4. TWO BANKS OF FOUR
Three Street Worlds
Red Egypsian
distri. Journeys

São muitos anos... de cumplicidade e experiências partilhadas por Rob Gallagher e Demus. No regresso dos Two Banks Of Four aos originais, a opção é depurar, simplifi car, deixar os samples de lado, diminuir a carga electrónica e aumentar a acústica. O jazz ao serviço da canção e das emoções, sem medo das palavras nem da música. Depois do entroncamento da electrónica, encontra-se o mundo na rua, ao virar da esquina.

5. CODY CHESNUTT
The Headphone Masterpiece
One Little Indian
distri. Compact

Um músico num quarto com um microfone, uma guitarra, uma caixa de ritmos, um gravador de quatro pistas e auscultadores. 36 canções generosas de ar inacabado que transpiram uma energia criativa digna de registo. Um disco ecléctico que deambula pelo r&b, funk, soul, blues, folk, hip-hop, reggae, rock ou pop psicadélica e fá-lo com grande espontaneidade. Estreia em grande do americano Cody ChesnuTT.

6. MARIA RITA
Maria Rita
Warner distri. Warner Music

À parte da vaga de quase histeria que rodeia o seu nome, Maria Rita revela-se neste seu primeiro disco como uma intérprete de excepção. A maneira inteligente como doseia emoção e técnica (opção que remete para o legado directo da sua mãe, Elis Regina) e a forma como abraça um reportório de extremo bom gosto são reveladores de que ela é já muito mais do que uma jovem cantora a tentar a sua sorte.

7. COLDER
Again
Output, distri. Ananana

Uma das estreias do ano. O designer gráfi co francês Marc Nguyen Tan enfi ou-se num estúdio caseiro e resolveu editar um longa duração na editora inglesa Output de Trevor Jackson. O resultado é uma música personalizada assente nas electrónicas, nas sonoridades híbridas póspunk, no dub e nos ambientes cinematográfi cos. Narrativas sonoras que propõem uma jornada íntima e melancólica.

8. KLEZMATICS
Rise Up!
Piranha, distri. Megamúsica

É uma tentação abordar "Rise Up!" como manifesto mas essa perspectiva será sempre redutora. Seria então um imenso desperdício, para o bem e para o mal, escutar a música dos Klezmatics segundo um ponto de vista estritamente religioso ou político, porque mais do que um documento sobre ética ou um manual sobre relações internacionais, é um tratado sobre a arte de bem musicar toda a partitura. Partindo da tradição klezmher, os Klezmatics rompem gerações, trespassam.

9. RICKIE LEE JONES
Evening of my Best Day
V 2, distri. Edel

A tarde do melhor dia dela. Ou "Just a perfect day", como diria Lou Reed..."The Evening of my Best day" envolve-nos em paisagens pop, jazz, country, rhythm & blues, "americana", gospel...Ecos de Joni Mitchell e certidões de apadrinhamento a Suzanne Vega. Ouve-se e quer-se mais, levando-nos, a cada audição, a penetrar mais profundamente neste dia com a duração da eternidade. Iluminado por fora, escuro como um poço por dentro.

10. URSULA RUCKER
Silver Or Lead
Studio K7!, distri. Zona Música

Confirmação da cantora-poetisa de Filadélfi a como uma das figuras mais relevantes a emergir na música urbana. Um disco homogéneo feito de partículas de jazz, fi guras soul, enlevos rítmicos inspirados no hip-hop, devaneios orquestrais e um discurso cantado feito de poesia humanista. Um jogo ambivalente para palavras, voz tranquila e uma invulgar forma de olhar para a complexidade do real.

11. JOHN CALE
HoboSapiens
EMI, distri. EMI-VC

Co-produzido por Nick Frangle, dos Lemon Jelly, confi rma as virtudes, reduzindo ao mínimo os defeitos, deste músico que desde os Velvet Underground mantém uma relação quase esquizofrénica entre a pop e o experimentalismo. Aqui num jogo de canções onde o classicismo, o surrealismo dos arranjos e a apropriação das novas tecnologias se combina no melhor Cale dos últimos anos.

12. SPACEK
Vintage Hi.Tech
Studio K7!, distri. MVM

Ao segundo álbum os ingleses Spacek radicalizam a sua proposta. Arquitectura sonora visionária, linhas hipnóticas, camadas electrónicas oblíquas que se suspendem no espaço, parecendo controlar o tempo, circulando sobre si próprias, até se alojarem no infi nito. Música para ritmo, alma e silêncio. Soul e electrónica, frio e quente, racionalidade e emoções. Música hi-tech ambígua e andrógina.

13. WHITE STRIPES
Elephant
XL; distri MVM

Só quem não tem memória de elefante é que desaprendeu que as modas vão mas voltam. Os White Stripes eram daquelas irredutíveis aldeias gaulesas que defenderam o rock quando ele andava desacreditado. Hoje são pontas-de-lança de uma nova tendência, porque não desarmaram. Não será o seu melhor disco, mas a sua consistência serve bem de equilíbrio a estas duas personagens perturbantes. Com "Seven Nation Army"acreditase que ainda há boas canções indie-rock. Até nova perda de memória.

14. KIMMO POHJONEN
Kluster
Rockadillo, distri. Megamúsica

Podia ser a banda-sonora do dia do Julgamento Final ou da criação do mundo - é apenas um acordeão, samplers e voz que desembocam em pânico, fulgor, ânsia, vísceras e fúria. Pohjonen é fi nlandês e o folclore do seu país de origem está lá, mas transmutado em matéria nova, música nunca antes ouvida, o Belo revestido de urgência sufocante. Folk digital de câmara para o próximo século, num disco radical e vanguardista.

15. MADLIB
Shades Of Blue - Madlib Invades The Blue Note Blue Note
distri. Emi-VC

Madlib carrega a tocha da mais emblemática editora de jazz, iluminando o seu acervo com o hip-hop plástico contemporâneo. Nas mãos tem a música de Donald Byrd, Ronny Jordan, Wayne Shorter ou Horace Silver, no corpo o groove, na cabeça a visão estética que tem permitido ao hip-hop surpreender os mais descrentes. É um disco seminal e intemporal de música negra.

16. JOE HENRY
Tiny Voices
Epitaph , distri. Compact Records

Longe vão os tempos em que Joe Henry morria de frustração ao fim de uma sequência de bem recebidos discos de country/folk. A crítica gostava, os fãs também mas Joe sentia-se tolhado a nível musical. Em "Tiny Voices" usa o jazz para construir sonoridades imagéticas e cinematográfi cas que nos permitem sonhar com as mais diversas ambiências. Fragmentado e emocional, sombrio, melancólico, perturbador.

17. DIZZEE RASCAL
Boy in da Corner
XL Recordings, distri. MVM

Aos 18 anos, Dilan Mills fez o que ainda ninguém no Reino Unido tinha conseguido. Forjou um hip-hop que descola da herança americana para se reinventar. Pega nas tradições britânicas - leia-se jungle - e ergue uma nova linha de mobiliário urbano que tem tanto de luminoso quanto de sujo. Na Londres do século XXI, as batidas são secas e as melodias cortantes. A verdade dói.

18. CAT POWER
You are free
Matador, distri. Zona Música

Chan Marshall continua a compor como quem cria atalhos numa selva de recalcamentos. Uma guitarra (ou um piano) e a voz são sufi cientes para que cada canção testemunhe como a linha que divide a insanidade e a beleza é ténue e necessária. Chama-se desespero, essa fronteira, e Marshall atravessa-a com a certeza dos mancos. Por uma vez, a equação de mútua identidade entre dor e deslumbramento faz sentido.

19. THE MATTHEW HERBERT BIG BAND
Goodbye Swingtime
Accidental Records, distri. Symbiose

O jazz não era uma novidade na vida do inglês Herbert, mas intensificou-se com este disco naquele que é, de uma só vez, o seu álbum mais clássico e arrojado. Um disco de uma big band de jazz mas que integra sons concretos, movimentos de "swing" e microrganismos electrónicos. A estrutura da canção pop é adulterada do seu centro. Música plástica, criadora de harmonias, mas a partir de um ponto de vista dissonante.

20. MASSIVE ATTACK
100th Window
Virgin, distri. Emi-VC

Dividiu opiniões e percebe-se porquê. Imaginado por 3D é muito mais do que um disco. É um conceito global, de sons, imagens e mensagens, exposto em disco numa sonoridade hipnótica e obssessiva, com vozes neutrais e espectrais que se incrustam no sistema nervoso. Música quase imóvel que se revela em camadas sobrepostas, em temperaturas, cores, luzes. Um som liso e voluptuosamente abstracto.

 

 

MÚSICA/NACIONAL
Escolhas de Fernando Magalhães, João Bonifácio, Miguel Francisco Cadete, Nuno Ferreira, Nuno Pacheco, Rui Portulez e Vítor Belanciano

1. MELO D
Outro Universo
Loop Recordings, distri. Emi-VC

Música negra urbana como Portugal necessitava. Canções que respiram a sabedoria dos clássicos (João Gilberto, Carlos do Nascimento, John Coltrane, Gang Starr, Carlos do Carmo, Marvin Gaye ou Bob Marley), mas que expõem uma personalidade própria e não se limitam à citação de modelos importados. Música localglobal, criada no contexto multicultural de Lisboa; música que refl ecte a cidade em mutação, respirando a forma como Angola ou o Brasil são assimilados em Lisboa, mas ao mesmo tempo expondo as silhuetas contemporâneas da soul, r&b, hip-hop ou dub. Uma vontade de assimilar e de compreender ou, como diz o excantor dos Cool Hipnoise, de "beber tudo isso e deixar as coisas sair". Um disco de alguém que fez as pazes com a vida e não vê outra maneira de celebrá-la senão plantando no centro da cidade desencantada uma mão-cheia de canções impregnadas da sabedoria dos clássicos. Não é perfeito; mas na sua procura de novos caminhos para a música portuguesa é um documento que abre portas. Que mais gente entre...

2. LOOPLESS
Loopless
Nylon Recordings, distri. Edel

É um disco consistente e seguro, que encontra na canção o meio, a forma e o mote para aventuras diletantes pelo jazz, soul e funk, e por toda a latitude sonora que a ideia de música electrónica comporta. Elegante, sofi sticado e pop, "Loopless" estabelece pontes com a realidade urbana da diáspora africana, respira Lisboa por todos os poros e refl ecte a atitude cosmopolita dos novos produtores da electrónica nacional.

3. RICARDO ROCHA
Voluptuária
Ed. e distri. Vaschier

Disco de estreia de um virtuoso da guitarra portuguesa. São 23 temas originais, à excepção de oito versões, de Pedro Caldeira Cabral e mestre Paredes - mas mesmo estas têm arranjos do próprio autor. Não é um disco de fado, é uma obra experimental, que tanto bebe na música medieval como no dodecafonismo. Difícil e complexo, recusa simplismos e caminhos batidos. Mas é uma obra possuída por uma beleza frenética, intensa e superior.

4. OLD JERUSALEM
April
Borland, distri. O Rouco

Fazer folk americana em Portugal pode parecer anacrónico, mas nada é problema quando se tem dois trunfos: qualidade de escrita e uma voz delicada. Old Jerusalem nunca cai no óbvio: das águas límpidas de uns Lambchop às águas negras de uns New Order, no fulcro das melodias equilibram-se o gótico geométrico de uns Palace de "Arise Therefore" e o mel da mais solarenga cantilena. Estreia seguríssima.

5. FAUSTO BORDALO DIAS
A Ópera Mágica do Cantor Maldito
Ed. e distri. Sony Music

Aperfeiçoada ao longo de anos, "A Ópera Mágica do Cantor Maldito" procura ler os dramas e contradições de uma geração fortemente marcada pela música à luz do mesmo método seguido por Fausto na trilogia iniciada com "Por Este Rio Acima". Nesta passagem da história trágico-marítima à história trágico-política, o compositor enfrentou um espelho embaciado com toda a luminosidade da sua arte criativa.

6. MESA
Mesa
Ed. e distri. Zona Música

A pop em Portugal existe? Sem dúvida. À primeira cavadela, os Mesa lançaram as sementes de um futuro que ameaça brilhar. Mostraram competência sem fazer alarde do virtuosismo; são modernos sem se ajoelharem perante a moda e tornaram-se contagiantes sem apelar à demagogia. "Esquecimento" fi ca como uma das canções do ano, mas o melhor, espera-se, ainda está para vir.

7. STEALING ORCHESTRA
The Incredible Shrinking Band
Zounds, distri. Sabotage

Um OVNI escatológico guiado por Raymond Scott, a banda sonora ideal para jogar Spectrum com os pés, assistir a um canal de vendas mandarim às seis da manhã depois de três dias sem dormir, ou fazer bebés (mas em posições proibidas nos EUA). Ao segundo álbum, a "orquestra do gamanço" construiu um tetris psicadélico assente em cruzamentos electro-acústicos, um labirinto de referências às séries B, Z e BD, uma Babel deliciosa.

8. BALLA
Le Jeu
Music Mob, distri. Ananana

O trabalho de pesquisa via "sampler" com alusões à canção francesa, a instrumentação convencional acústica e as lentas programações electrónicas vagamente inspiradas no hip-hop propõem um infi ndável jogo de alusões onde se cruzam realidade e fi cção, sofi sticação e apelo pop imediato. Um álbum charmoso e descomplexado, criado pelo, cada vez mais, multifacetado Armando Teixeira.

9. SPACEBOYS
Sonic Fiction
Nylon Recordings, distri. Edel

Quando a produção nacional deixa preconceitos e fórmulas requentadas à porta do estúdio e investe na imaginação e na cumplicidade de ideias e personalidades distintas, então é capaz de se regenerar, deitar para trás das costas complexos provincianos e partir à conquista do mundo. Foi este o caminho escolhido pelos Spaceboys. Mergulharam no fusionismo revisitado pelo "broken beat" e inventaram o kuduro intergaláctico. Música complexa, excitante, estimulante e apaixonante.

10. RÁDIO MACAU
Acordar
Ed. e distri. Universal

"Sempre Mais", "Acordar" e "Noite Sem Fim" são a tríade de luxo que abre o álbum - regresso da banda de Xana e Flak à demanda da canção perfeita. Assustam pela simplicidade e fascinam pela grandeza, armas ferozes no combate ao ruído da espuma dos dias. Em jeito de remate, "Eclipse" é o tema épico que os Rádio não tiveram medo de compor: um hino à condição humana que não toca na rádio nem na TV. Porquê?

 

 

CINEMA
Escolhas de Kathleen Gomes, Luís Miguel Oliveira, Mário Jorge Torres e Vasco Câmara

1. ELEPHANT
Gus van Sant

Começa-se, em "Elephant", por seguir atrás do virtuosismo de um cineasta (fi lmado assim, em longos planossequência, não anda longe de uma peça musical), acaba-se com uma obra pendurada sobre o vazio, humana, desesperadamente humana. É o "shock corridor" de Gus van Sant: uma singular evocação do massacre de Columbine (digamos: a versão anti-"Bowling for Columbine") sob a forma de um percurso labiríntico por um liceu americano nos momentos que antecedem a explosão da violência. É um fi lme de pequenos gestos, um espantoso exercício formal que, algures entre o "teen horror movie", o jogo de vídeo (o ponto de vista das nucas) e a crónica documental, inventa o seu próprio lugar. Não podemos senão estar sós perante um fi lme que recusa explicar-se, não vemos nele senão fi guras rodeadas de solidão (por isso, o espaço parece por vezes sobredimensionado). Num ano em que o cinema americano se impôs com um punhado de fi lmesfortes (mas, de algum modo, "clássicos"), "Elephant" foi o ovni, o mais inaprisionável.

2. A ÚLTIMA HORA
Spike Lee

O cinema americano reagia ao trauma do 11 de Setembro. Sem contemplações ao politicamente correcto, Lee exibiu a ferida (o "Ground Zero") e pôs o seu anti-herói, um "dealer" que vive o último dia em liberdade, a fazer a mesma pergunta que a América: como recompor-se após a catástrofe? É um fi lme furioso (a sequência de Norton ao espelho, insultando as etnias de Nova Iorque) sem deixar de ensaiar a reconciliação. É fi lme para juntar ao panteão onde reina "Taxi Driver".

3. MYSTIC RIVER
Clint Eastwood

Clint Eastwood mais perto da perfeição: "Mystic River" é uma obra imensa, a prova de que a maturação pode assombrar - sobretudo, quando elegância (estilística) e grandeza (de temas, de modelos) andam a par. Meditação moral que é todo um programa shakesperiano (traição, vingança, laços de sangue, peso social), elege o mal como elo de ligação entre três homens, inescapável e epidémico, recusando esquemas maniqueístas. Assustador.

4. LONGE DO PARAÍSO
Todd Haynes

Se os exercícios de revisionismo se têm pautado pela impossibilidade de voltar a um modelo clássico (a isto chama-se pós-modernismo), "Longe do Paraíso" faz o contrário. Nem réplica nem "remake", reactiva o melodrama sirkiano, mas baralha a cronologia, jogando em dois tempos. Ou seja, é um fi lme de hoje, como se fosse feito nos anos 50 (mesmas cores, mesmos códigos, por vezes citação assumidíssima de "All that Heaven Allows"). Pode não parecer, mas essa é a sua maior singularidade.

5. ONDE JAZ O TEU SORRISO?
Pedro Costa

Depois de "No Quarto da Vanda", Costa fechou-se na sala de montagem com um casal e fi lmou o seu pequeno teatro de desacordos, terno e violento. Dir-se-ia Tracy-Hepburn, é Straub-Huillet perante o seu "labour of love" (uma nova montagem de "Sicília!"). Filme sobre uma dupla de cineastas, a relação de um casal ou sobre o cinema - vai tudo dar ao mesmo: fulgurante olhar sobre o amor.

6. O PÂNTANO
Lucrecia Martel

A descoberta do ano? É uma hipótese. A partir da "história" de uma família entorpecida pela sua inércia, afectiva e social, uma cineasta argentina trouxe-nos algo da sua convivência, íntima e incestuosa, com os seres que a rodearam na infância e na adolescência. O que signifi ca que partilhámos um paraíso de sensualidade mórbida. E fi zemos mais do que isso: reconhecemos. Reconhecemo-nos, neste fi lme dominador.

7. KILL BILL - VOL. 1
Quentin Tarantino

Os olhos abertos de êxtase, cheirando o sangue - Black Mamba, Califórnia Moutain Snake, Cottonmouth, Copperhead . "Kill Bill" ou o "Império dos Sentidos" de Tarantino. Um fi lme de mulheres com nomes de víboras que correm desenfreadas atrás do movimento das suas espadas. No centro, Uma Thurman, que QT quis fi lmar como Josef von Sternberg fi lmou Marlene (visto que Uma é a assassina, a mãe e a amante, todas de uma vez só, podemos pensar em "A Vénus Loira").

8. APANHA-ME SE PUDERES
Steven Spielberg

Tem sido um ritual: reconhecer que Spielberg está corajoso. É o adjectivo para caracterizá-lo em "Apanha-me se Puderes". "Corajoso", um divertimento sobre os 60's, com a personagem de um compulsivo trafulha? Sim, é um divertimento sob o signo da catarse. Explicita um tema (a ausência do pai) que percorre o seu cinema, e que Spielberg vem tratando de forma mais aberta, sem fugir da dor... Serve como auto-retrato de um jovem que aproveitou a ruina do cinema clássico para inventar "blockbusters".

9. VAI E VEM
João César Monteiro

Como João Vuvu, variação a partir de João de Deus (variação a partir de João César Monteiro), um cineasta chegou à mais rarefeita das suas cerimónias. É uma pantomima, um faz-de-conta feito de gestos e toques delicados. Foi o seu último fi lme, mas Monteiro não deixará de nos fi xar. Sempre que virmos um fi lme seu, vamos lembrar-nos do seu último olhar em "Vai e Vem". Devolveu-nos as certezas que julgávamos ter sobre o mais genial dos cineastas portugueses.

10. MISCHKA
Jean- François Stévenin

Passe de mágica, o filme transbordante do Verão - um filme sobre as férias, famílias e sentimentos que colidem nas auto-estradas. Animado por inesgotável energia de afectividade, fez pairar Renoir e Cassavetes (e Johnny Halliday) sobre a França profunda. Mais importante: trouxe a Portugal a obra, rara (e de uma sensibilidade mais difícil de catalogar), de um dos grandes cineastas (também actor) franceses.

Sugerir correcção
Comentar