Nas fronteiras do desenho, BD e ilustração

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Desenho, banda desenhada e ilustração. Figuração, sequência, narrativa, manchas de tinta. Contágios e promiscuidades entre linguagens visuais diferentes. Eis o que vai mostrar "Furacão Mitra", que se inaugura a 10 de Dezembro no edifício da Interpress, no Bairro Alto, em Lisboa. Ao todo, são quatro exposições: uma colectiva e uma individual com artistas portugueses, e duas individuais de autores internacionais de banda desenhada (Mike Diana e Fabio Zimbres).

Não se trata, lembra-nos o organizador, José Feitor, de um evento isolado, destituído de rede ou história. Surge no seguimento de várias iniciativas como a exposição "Zurzir o Gigante", realizada no mesmo local, em 2005.

Mas é a mostra colectiva que nos interessa aqui. Nela confluem artistas plásticos que fizeram ou fazem ilustração, autores de banda desenhada que no passado esboçaram o início de uma carreira artística e exemplos de autores dificilmente classificáveis: André Lemos, Bruno Borges, Filipe Abranches, Gonçalo Pena, José Feitor, Luís Henriques, Marco Mendes, Miguel Carneiro, Pedro Lourenço e Rosa Baptista.

É uma lista que não se reduz a uma tendência, mas sinaliza a presença de estilos e universos distintos, num território aberto aos movimentos do desenho, da banda desenhada e da ilustração. Mais: assinala as experiências de uma série de artistas que interrogam (quando não põem em crise) as fronteiras dessas formas de expressão. E com isso revelam histórias comuns e aproximações possíveis em terrenos, quiçá, partilháveis.  

Narrativa e sequência

O comissário e artista Paulo Mendes é um conhecedor e apreciador de banda desenhada que classifica como "uma das artes de comunicação visual mais importantes do último século". Em 1996 colocou lado a lado, na exposição colectiva "Zapping Ecstasy", obras de artistas e de autores de banda desenhada ("Furacão Mitra" não é, nesse sentido, uma iniciativa inédita), e já levou ao seu programa de exposições IN.TRANSIT, no Porto, intervenções "site-specific" de André Lemos ou Marco Mendes (que fizeram ou fazem banda desenhada). Sobre uma eventual realidade dominada por novos contágios e migrações estéticas tem, porém, uma opinião cautelosa, se não mesmo céptica: "Não me parece que exista em Portugal, neste momento, um grupo numeroso de artistas que reivindique como influência determinante na sua obra a banda desenhada ou a ilustração." "Formalmente essa relação é sobretudo casuística e pontual no desenvolvimento de determinadas obras", defende. Por outro lado, lembra ainda, "a banda desenhada não necessita da legitimação da arte contemporânea".

Pedro Moura, pedagogo e autor do blogue Ler BD (lerbd.blogspot.com), tem uma perspectiva porventura mais arriscada. Num dos seus artigos propõe a banda desenhada "como uma forma particular, se não mesmo privilegiada, de pensar o mundo através do desenho". O seu olhar dirige-se, por isso, como o próprio nos esclarece, a uma área que inclui "a banda desenhada, a ilustração, os livros de desenhos em sequência ou série, histórias com imagens, sistemas icónico-narrativos".

Quando falamos aqui de banda desenhada, referirmo-nos, claro está, àquela mais "vanguardista" e reflexiva, embora a experimentação não constitua um facto novo na sua história. Tornou-se apenas mais visível. Ora é esta alteração que permanece indiferente ao mundo da arte, apesar de "O Peregrino Blindado" de Eduardo Batarda (livro com uma narrativa, para ser lido? Ou um livro de artista?) ou de certas obras de David Wojnarowicz e de Öyvind Fahlström.

Podemos identificar duas razões para tal atitude: o entendimento da banda desenhada como uma forma de entretenimento juvenil e infantil e o peso da narrativa e da intenção de contar histórias. Mas esses são argumentos questionáveis e facilmente desmontáveis. Afinal, a sequência e a narrativa não estão ausentes da arte - inclusive da contemporânea - e muitos dos preconceitos devem-se não só à ignorância do campo arte, bem como à incapacidade da banda desenhada e da ilustração em se lhe dirigir. Como pôr, então, as duas frente a frente? Pedro Moura sugere "equilíbrio discursivo, alguma aceitação em encontrar especificidades inesperadas, e argumentar num diálogo contínuo sobre uma aproximação entre os dois campos". Domingos Isabelinho, crítico do blogue thecribsheet-isabelinho.blogspot.com, vai mais longe, qualificando de banda desenhada obras de Picasso, Phillip Guston e Ana Hatherly. E deixa a pergunta: "Se o modernismo permitiu, a outras artes, experimentações que fizeram explodir moldes muito rígidos, por que razão se há-de espartilhar a banda desenhada em autênticos leitos de Procusta?" 

Fanzines, livros de artista e grandes trabalhos

Na colectiva de "Furacão Mitra" encontramos artistas que habitam essa "área em expansão" referida por Pedro Moura, indiferentes aos perigos de certos leitos e outros mitos. André Lemos é um deles. Autodidacta assumido, começou pela banda desenhada, da qual se tem afastado, para se dedicar ao desenho, quase sempre a preto e branco e num trabalho directo sobre o papel. Algumas das suas obras têm saído pela mão da Opuntia Books, uma editora criada pelo próprio e especializada em objectos artesanais e híbridos, algures entre o fanzine e o livro de artista (Alexandre Estrela, conhecido, sobretudo, por trabalhar com o vídeo e a instalação vai ser o próximo nome da colecção).

Esta dificuldade em distinguir os dois tipos de publicação assinala, aliás, uma característica da actividade de alguns destes criadores: a constante experimentação com a edição, a publicação e os diferentes formatos do desenho ou técnicas como a gravura. Veja-se, por exemplo, José Feitor e a sua Imprensa Canalha, pequena editora independente onde se publicam livros (ou fanzines) que põem de pernas para o ar os conceitos de ilustração e artes gráficas.

Já Filipe Abranches não tem a actividade de editor e, como Lemos, nunca estudou artes plásticas. Começou pelo cinema antes de construir uma carreira como ilustrador e autor de banda desenhada. O seu traço não respeita as convenções dos dois géneros: é feito de linhas e gestos, expressivo e expressionista, enquanto as suas narrativas visuais lidam com o tempo e a justaposição de imagens. Trabalha entre a ilustração e a banda desenhada e sempre disposto a empurrar os limites de ambas.

Miguel Carneiro e Marco Mendes também fazem banda desenhada, mas os seus percursos cruzam-se com o mundo da arte e são indissociáveis de um certo contexto artístico portuense. O primeiro chegou a ser nomeado em 2003 para a quarta edição do Prémio EDP Jovens Artistas e foi um dos membros do projecto Pêssego Prà Semana, antes de conhecer a obras de Isabel Carvalho e Pedro Nora no fanzine "A Língua". O seu trabalho, baseado num desenho minimal e agressivo, tem um registo humorístico e revela a presença repetida de figuras e personagens.

Quanto a Marco Mendes, diz ser tanto um artista plástico como um autor de banda desenhada e encontra no desenho uma forma de contar histórias de cariz autobiográfico. Marco e Miguel formam o projecto A Mula e realizam iniciativas onde os conceitos de publicação e exposição são contextualizados por pinturas murais num universo gráfico partilhado.

Na arte portuguesa, o uso do fanzine ou da banda desenhada - como espaços e meios de expressão, experimentação ou comunicação - conta entretanto com uma pequena história. Fernando Brito, um dos Homeostéticos, publicou bandas desenhadas, tal como Rui Chafes ou Rigo, cujo vocabulário gráfico ainda apresenta memórias dessa arte.  

Juntam-se a estes outros "episódios" mais relevantes como os de Alice Geirinhas e João Fonte Santa (com "Facada Morta" e "Vaca Veio do Espaço") e já nos anos 90 a citada Isabel Carvalho. Finalmente, da cena ligada à Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha, destacam-se o iconoclasta e "trash" "Cona da Mão Comics" de Gonçalo Pena, hoje um pintor de galeria, e "Bactéria", de Francisco Vidal.

Outro caso singular, não de produção, mas de publicação foi a revista de desenho "Manual" que Alexandre Estrela co-editou em 2003 com Scott Harrison e no campo da ilustração são incontornáveis as experiências desenvolvidas, nos anos 90, no semanário "O Independente". Durante a direcção de arte de Jorge Silva, trabalharam nesse jornal Pedro Amaral, Alice Geirinhas, João Fonte Santa e Gonçalo Pena. E, por vezes, sem a orientação do texto, acabaram por fazer artes plásticas, pequenas pinturas ou ligações inesperadas, como aquela que vai atravessando a pintura figurativa de Gonçalo Pena.

Nem por acaso, alguns destes nomes marcaram a produção visual de Rosa Baptista, membro do colectivo artístico feminino Pizz Buin e também ela participante em "Furacão Mitra". Pedimos que se apresente nessa condição. Ilustradora? Autora de banda desenhada? Artista plástica? "Sou uma pessoa e vou desenvolvendo vários trabalhos em vários suportes. Não tenho uma categorização específica, porque para mim todos os trabalhos fazem parte de Um grande trabalho."

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