Os medos de Ang Lee face ao desejo feminino

São precisos 90 minutos, dos 158 que dura "Sedução, Conspiração"/"Lust, Caution", até Ang Lee chegar à "luxúria" ("Lust") do título original. Mas o realizador de 53 anos nascido em Taiwan não pode escapar a que a conversa se centre naquilo que acontece ao fim dessa espera. É que as posições que coreografou para as suas personagens, um homem e uma mulher que se apaixonaram e se desejam, não costumam abundar no cinema "mainstream", muito menos numa produção chinesa, e até nem são nada evidentes na obra, não casta mas essencialmente pudica, deste realizador.

Há mesmo quem se pergunte: até onde foram estes actores? Lee está preparado para responder. "Já viu o filme? Veja outra vez. A mim parece-me que é claro. Não podíamos estar a obrigar os actores a repetir 11 "takes". Sim, as coisas foram a sério". É claro: a adaptação deste conto de Eileen Chang (1920-1925), durante anos autora banida na China mas indiscutivelmente a mais amada da moderna literatura chinesa, não é um filme sobre sexo. Como outros filmes de Ang Lee, também este, passado nos anos 1930, inícios da década de 1940, em Hong Kong e em Xangai, é um filme sobre pessoas que tentam escapar à repressão - aquela que está à volta delas e aquela que está dentro delas.

Os amantes neste caso não são "cowboys" (como em "O Segredo de Brokeback Mountain") nem vivem na Inglaterra victoriana (como em "Sensibilidade e Bom Senso"); são cidadãos chineses que tentam libertar-se de um fardo que pesa sobre eles, situados que estão em campos opostos da política, durante a ocupação japonesa da China.

Dos "cowboys gay" às mulheres

O Mr. Yee interpretado por Tony Leung, chefe dos serviços secretos do governo chinês colaboracionista, está encerrado numa segurança impenetrável. Wong Chai Chi, a estudante/actriz interpretada por Tang Wei, representa a única forma de um grupo de patriotas antijaponeses chegar suficientemente perto dele para o matar. Embora ela sacrifique a sua virgindade com um colega para aprender as artes do amor, Wong Chai Chi não consegue, a princípio, seduzir Yee. No entanto, três anos mais tarde e já muito menos inocente, atinge o seu objectivo, fazendo-se passar pela desiludida e mal-amada mulher de um ausente homem de negócios e, sobretudo, aproximando-se da mesa de "mahjong" da mulher de Yee (Joan Chen). Só que Wong Chai Chi não sabe que se vai apaixonar por aquele homem. É assim que as promessas de "thriller", melodrama introvertido e filme erótico se fazem ver no horizonte deste filme.

"Adaptar esta história ao ecrã foi para mim, em termos psicológicos, mais assustador do que retratar os "cowboys gay" americanos", admite Lee, "porque a história é contada do ponto de vista do prazer sexual de uma mulher e tem como cenário algo de muito patriarcal, uma guerra - a luta contra os japoneses. Nunca tinha visto isso na literatura chinesa. Não tem havido retratos psicológicos da sexualidade de uma mulher; é tudo sempre sobre homens. Na verdade, foi assim que cresci, culturalmente, portanto era natural que estivesse assustado em relação à forma como trabalhar com os actores, o que fazer com eles, essa coisa de os despir, envolver numa situação de desejo, ganhar a confiança deles, provar o sabor das emoções e depois negá-las, porque tudo é suposto ser a fingir... isso mete medo.

Os actores só são bons quando ficam encantados com o realizador e quando eles se transformam na personagem tudo é possível. Por isso é importante saber os limites. Eu sei onde é que esses limites estão, por isso nunca matarei ninguém - para o filmar. Em relação a esta história de um amor que se tem que negar: isso é uma coisa profunda para mim", diz o realizador, que assume em entrevistas que mais do que do desejo de querer fazer um filme não americano a seguir a "O Segredo de Brokeback Mountain", "Sedução, Conspiração" é produto directo de uma "crise de meia-idade": chegou para Ang aquele momento em que os sonhos, e falamos da fantasia do "romance", têm de ser confrontados com a sua impossibilidade.

Os espectadores chineses viram uma versão censurada do filme. Nos Estados Unidos passou a versão integral, mas com a classificação NC-17 - o que significa que o filme só pôde ser exibido num grupo seleccionado de salas de cinema. Mas o sexo é necessário a esta história. "Dá um peso completamente diferente a todo o filme porque ancora, por assim dizer, o aspecto psicológico da relação entre as personagens. Só por isso é que fui tão longe. É claro que é cansativo, porque não estamos habituados a isso, todos nós, asiáticos, somos, no fundo, pessoas tímidas. Tivemos que falar muito entre nós. Mas era uma questão decisiva: retratar uma certa humanidade naquele ponto-limite de confusão, de linguagem corporal enredada, e rodeada de decepção."

Na verdade, diz Ang, há muito mais a unir, do que a separar, esta história de amor e desejo heterossexual e "O Segredo de Brokeback Mountain", para além do facto de serem ambos filmes baseados em curtos romances. "A todos nós falta a linguagem para expressar o que sentimos, e a única maneira de tornar alguma coisa visível é através da linguagem corporal. Já era assim com os "cowboys": eram tímidos e não sabiam o que fazer um com o outro". A estrela de Hong Kong Tony Leung, de 45 anos, que se tem passeado no universo sensual de Wong Kar-wai, e Tang Wei, de 28, que foi escolhida entre 10 mil pretendentes chinesas e antes interpretara "uma rapariga muito interesseira e uma mulher-polícia muito maria-rapaz" em séries de televisão, encontraram-se com Lee três meses antes da rodagem para coreografar as cenas.

"Escrever estas cenas foi como coreografar as sequências de luta em "O Tigre e o Dragão"", diz Lee, referindo-se ao seu filme de 2000 que se mantém como o filme de língua estrangeira que mais dinheiro fez nos EUA. "Fizemos tudo juntos; num certo sentido, os argumentistas fomos nós os três". "Ele foi muito específico em relação a tudo, a cada gesto, a cada inclinação da cabeça, como mover as mãos", lembra-se Tang Wei. "Ele tinha-me falado das cenas de sexo, mas não me disse que havia tantas", ri-se. "No início estava um pouco nervosa, mas começámos a filmar e esqueci tudo. Só éramos quatro no "plateau" [incluindo o director de fotografia] e isso fez-me sentir confortável."

O carismático Leung admite que teve que ir para o ginásio para perder alguma inibição em mostrar o corpo, e teve que usar "make-up" para envelhecer o rosto, já que parece mais novo do que os seus 45 anos. E fica-se com a impressão que daria um braço, se isso fosse preciso, para ser visto num papel tão diferente daqueles que habitualmente interpreta. "Atraiu-me imenso a ambiguidade moral da personagem, que não é apenas um tipo bom ou um crápula, nem é apenas um homem frágil e atraente que foi o que sempre fiz nos meus cinco filmes com Wong Kar-wai. Era tempo de mudar, portanto. Adoraria trabalhar com Ang outra vez."

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