Há monstros no musical

A cada filme de Burton os fãs estão sempre à espera de uma novidade, um modo de, na extrema coerência de um universo que não se confunde com nenhum outro, avançar um passo mais, desenvolvendo o fantástico herdado do romance gótico de finais do século XIX, por via do maravilhoso do Romantismo Alemão, com tantas entidades mediadoras que enriquecem a sua obra, tais como reminiscências dos clássicos da Disney, do "Feiticeiro de Oz" ou do mundo menos complexo dos "comics"...

Alguma crítica recebeu de forma pouco entusiástica "Sweeney Todd", acusado de pouco inovar no contexto da "burtoniana" essencial. Antes de mais, é preciso levar em conta a origem teatral do material. As opções estéticas de permanecer "fiel" ao musical de Stephen Sondheim determinam que "Sweeney Todd" - adaptação do espectáculo estreado na Broadway em 1979 - tenha que ler-se neste contexto: Burton entendeu que tinha que deixar marcas fundamentais do texto, não ignorando a dimensão operática (embora nunca aprofundando em excesso a ligação com as "óperas" de Kurt Weill) e não sem explorar a radical modernidade da partitura, o que lhe permite transportar um texto teatral para a mobilidade fílmica de uma câmara que explora na perfeição as hipóteses do digital - em vertiginosos "travellings" sobre o cenário reminiscente do palco, mas renovado em cores soturnas que remetem para o imaginário vitoriano.

Este transporte de um "meio" para outro (Burton nunca cede à tentação de teatralizar) permite-lhe, inclusive, fazer com que Johnny Depp vocalize o "parlando" das renovações melódicas de Sondheim e dá a Helena Bonham-Carter, excelente no modo como sexualiza a personagem e como canta os resquícios de balada que atravessam a partitura, a possibilidade de cumprir as exigências vocais que "Sweeney Todd" exige.

O gosto pelo "gore"

Uma das questões essenciais que este musical levanta é o facto de, apesar das regras canónicas, tanto da Broadway, quanto de Hollywood, de associar mecanicamente Musical e Comédia (veja-se a vitória de Depp, nos Globos de Ouro, como melhor actor de Comédia ou Musical e de "Sweeney Todd" como melhor filme de Comédia ou Musical), é que tal associação não faz sentido. "Sweeney Todd" debruça-se sobre os malefícios da Revolução Industrial, sobre um sistema judicial corrupto e sobre memórias visuais e iconográficas de um tempo que incorpora o grande romance "realista" de Charles Dickens, bem como uma abundante literatura de cordel, repleta de crimes hediondos e exibições despudoradas de sangue derramado, arriscando um tema "impossível" para um musical centrado no crime sem remorsos e em personagens negativas. Estabelece com o público uma relação de intimidação sem tréguas, nem complacências. Não se hesita em convocar pedofilia, antropofagia, a monstruosidade instituída em regra de correcção da sociedade injusta que se retrata. Do ponto de vista musical, Sondheim faz corresponder o esfacelamento do número musical no todo. O herói, o barbeiro "serial-killer" (personagem criada por Len Cariou na Broadway), comanda a acção com a sua cúmplice Mrs. Lovett, mas não existe qualquer lógica que escape ao disparate das peripécias excessivas do "Grand Guignol". E não há na punição final qualquer moralidade tranquilizadora.

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