O símbolo

O cinema português teve uma escassa dezena de filmes "comerciais", ou seja, feitos com esse intuito e chegados a esse resultado. O lamentável O Crime do Padre Amaro (2005) é o campeão absoluto, com 400 mil espectadores, e tem naturalmente encorajado sucessores. Este ano estrearam Corrupção e agora Call Girl, ambos com os olhos nesses míticos 400 mil.<br/> Corrupção escolheu um caminho inédito: a dramatização de um caso de polícia que envolve a mafia do futebol, com algum (pouco) sexo à mistura. Não sabemos que filme fez João Botelho, porque apenas vimos o filme numa versão retalhada pelo produtor, uma coisa enfadonha, cheia de buracos narrativos e pingando música indigesta.

Call Girl, naturalmente mais coeso, mesmo porque António-Pedro Vasconcelos sabe fazer cinema com costela populista, de O Lugar do Morto (1984) a Os Imortais (2003). Ele é, com Joaquim Leitão, o pouco que se aproveita do nosso cinema comercial. Mas Call Girl pareceu-me um filme igual a tantos, o que é aliás o principal perigo do cinema de massas. Mesmo a caução cinéfila não ajuda. Botelho quis "fazer Lang" e fez Alexandre Valente. Vasconcelos quer "fazer Preminger" mas escreveu um enredo que mete abates de sobreiros numa vila alentejana, o que não é exactamente uma Anatomia de um Crime.

Tal como Corrupção, Call Girl tem um grande trunfo: Nicolau Breyner, sempre credível e impecável. Tudo o mais é feito "à americana" mas sem o desembaraço próprio de uma cinematografia industrial. Não há um plano memorável que não seja anatómico. As únicas conversas eficazes são as javardas. E o casting é um erro de casting. O mundo nebuloso dos corruptos não aguenta o insuperável canastrão Joaquim de Almeida.

O arremedo de buddy movie não funciona porque Ivo Canelas é tão bom a fazer de "pintas" que ninguém o leva a sério nos momentos sérios. Raul Solnado nem personagem tem. E devia ser proibido filmar Ana Padrão apenas cinco minutos.Sobra Soraia Chaves, que tinha sido uma Amélia nada queirosiano no filme dos 400 mil. A aposta de Vasconcelos é reforçar o estatuto da moça como sex symbol portuguesa. Não é coisa pouca, porque quase nunca tivemos disso. O cinema do Estado Novo era assexuado. O Cinema Novo teve a luminosa Maria Cabral, mas foi um lampejo. E nos últimos anos, Alexandra Lencastre não teve rival. Soraia Chaves vem da moda e é uma sex symbol da geração Maxim. Com uma outra modelo, a desenxabida Marisa Cruz, a coisa não pegou. Soraia, muito mais carnal, pegou. Se Call Girl for um grande sucesso, ela prova o seu espantoso apelo sexual junto das massas. E isso tem o seu interesse sociológico. Mas, como dizia o outro, mesmo que resulte na prática, não é certo que resulte em teoria.

Não estou nada convencido de que Soraia Chaves seja um sex symbol cinematográfico. Que me caia já aqui o tecto em cima se nego que ela seja espantosamente chamativa. Mas nos dois filmes que fez até agora deu mais corpo que alma às suas personagens. Ainda por cima, em Call Girl está mergulhada numa sexualidade excessiva, não tanto nas cenas de cama mas nas outras todas, com ginganço de quadris e ademanes, dicção à passarinho, fatiotas espampanantes e um estilo lânguido totalmente artificioso (mesmo tendo em conta a classe profissional que representa).

É um excesso que enfraquece a sua dimensão sexual, porque provoca risos na sala (eu ouvi) e devia provocar um silêncio lascivo. Quando contracena com Breyner, Soraia é competente na sua humilhação de um homem iludido (um Edward G. Robinson, digamos); mas quando tem que mostrar fragilidade (as cenas com Ivo Canelas) é frágil como actriz e não apenas como personagem. O entusiasmo que uma mulher bonita sempre suscita tem levado a elogios um bocadinho precoces, e digo já que eu não atiro a primeira pedra nesse campeonato. Mas neste caso estou entre os cépticos.

Soraia não tem mistério. E sem mistério não há símbolos, nem sequer símbolos sexuais.

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