“As pessoas são feitas daquilo que vão vendo”

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Manuel Amado Ricardo Brito

Encontrou o recanto perfeito no “atelier” para enquadrar naturezas-mortas. Constrói os desenhos a carvão antes de os encher em camadas finas de óleo. Não suja muito. Quer dominar a luz, a sombra e o espaço. Tem explicações certas para tudo o que pinta. Aos 50 anos de carreira, Manuel Amado alimenta-se de memórias e investe com prazer na criação de realidades inventadas. Na exposição que inaugura amanhã no Centro Cultural de Cascais, sob o título "Pintura, Pintura", quis revisitar-se em 69 trabalhos e, fora das exposições mono temáticas, mostrar imagens onde sobrevivem os seus temas pessoais, um mundo de objectos e lugares humanos desenhados com olhos de arquitecto. A certa altura na vida “empregou-se” na pintura a tempo inteiro. Aos 69 anos, a decisão continua séria. A obra, com mais de 600 trabalhos, parece concordar.

Tem alguma música de que goste muito?

Tenho. Normalmente trabalho sempre a ouvir música. Clássica e também música que se diga ligeira. Mas, o que gosto é da música dos meus tempos. As pessoas normalmente pertencem ao tempo em que eram novos. Gosto da música anos 50, 60, 70. A estas volto sempre porque me dá muito prazer ouvir. Há pessoas que gostam só de novidades, e eu pertenço ao grupo de pessoas que revisitam constantemente as coisas de que gostaram em mais novos. É disso de que são feitas. Na música e em tudo. Além de música clássica, principalmente Mozart, Bach, oiço Frank Sinatra e música brasileira.


Esta exposição que vai abrir em Novembro fecha o ciclo que começou no início do ano?

Não. É o contrário. Fui desenvolvendo o meu caminho, os meus caminhos das pinturas - estações de comboios, interiores, exteriores - muito ligado também ao facto de ser arquitecto. É-me muito fácil no sentido em que estou próximo de tudo o que tenha a ver com as construções que os homens fazem, edifícios, cidades. Mexer nisso dá-me um grande prazer.


Depois, enfim, vários temas que fui desenvolvendo, como as praias com as barracas. Quando éramos muito miúdos, íamos para a praia e as barracas eram as casas das pessoas. Ao lado estavam os amigos e a gente deixava a roupa e para nos vestirmos fechava-se a barraca. Era um instrumento de utilizar a praia que depois se perdeu. Vieram os toldos, que não havia nesse tempo, e hoje em dia ninguém vai para uma barraca, não tem graça nenhuma, tem um ar sujo. Dantes era completamente diferente.


Dá-me um prazer imenso ir às minhas recordações, ao que me lembro, e recriar em imagens essas praias por exemplo. A certa altura fiz a exposição sobre os teatros que não tinha nada a ver, foi um tema diferente porque a pintura é sempre a mesma. Fiz uma exposição enorme sobre teatro - 50 quadros, 3 anos a trabalhar nisso - e sem trabalhar nos meus motivos.


Quando acabei os teatros estava cheio de vontade de voltar outra vez, então voltei a fazer praias, fiz coisas novas mas não muitas porque esta exposição veio um bocadinho encavalitada na dos teatros. É uma exposição também muito grande porque o espaço é muito grande mas resolvi ir buscar pintura antiga desde o princípio, pedir alguns quadros à família e outros a amigos. É uma exposição também muito grande mas os quadros novos são poucos, não chegam a um terço. Esta exposição é uma espécie de paragem porque entretanto estou a desenvolver uma exposição que será daqui a 3 ou 4 anos. É outra vez um tema um bocado obsessivo, não é teatro é uma coisa um bocadinho ligada ao surrealismo mas nada a ver com o surrealismo porque não sou um surrealista mas tenho, até por geração, grandes ligações, não só afectivas, ligações culturais ao mundo do surrealismo que, enfim, quando era miúdo estava em pleno. Agora vou, através da minha pintura, revisitar o surrealismo. Mas isso é uma coisa que estou a fazer, está a começar. Isto tudo para dizer que esta exposição é uma espécie de paragem, de descanso, serviu para voltar a mexer em temas que me acompanharam toda a vida e é um bocado o fecho... Talvez não o fecho, mas o ponto de paragem entre duas exposições diferentes.


As memórias que apresentou no início do ano, na exposição sobre o mundo do teatro, eram memórias suas, memórias mais fora do comum...

O meu pai interessou-se muito por teatro e eu fiz muito teatro até, entre os 10 e os 20 anos. Todos os anos representei três ou quatro peças. Era teatro amador, no colégio, no teatro do Couto Viana da Mocidade [Portuguesa], no teatro universitário. Fiz muito teatro, representei muito, fiz alguns cenários, depois ainda tornei a fazer.


Para além de uma ligação fiquei com um conhecimento, um saber por dentro e por isso é que me interessou muito. Alguns amigos do teatro foram ver a exposição e disseram que só uma pessoa que andou por dentro do teatro podia ter feito aqueles quadros.


Estas memórias que vai apresentar agora são mais vulgares, lugares com que toda a gente se identifica...

Ligados também aos meus tempos de juventude mas são coisas comuns que a gente vê, ou que se lembra de ter visto, de ter gostado.


Estes lugares existem? Quando olho para aquelas barracas de praia penso na Figueira...

Não. As barracas existiram e eram todas iguais. Íamos a qualquer praia e eram as mesmas barracas. Algumas coisas têm um suporte. Por exemplo, a casa do Campo Grande em que vivi em miúdo que é agora o Museu da Cidade. Não pinto o que está lá agora, pinto o que me lembro do que estava. Essas coisas têm uma referência física. Há também Lisboa. Mas a certa altura já não é bem uma rua de Lisboa, é uma ideia feita de bocados.


Socorre-se de fotografias?

Socorro-me de fotografias, mas nem um terço. A maior parte dos quadros que faço não têm suporte. Quando faço - e fiz muitas coisas de Lisboa - não ia pintar para a rua, nenhum pintor faz isso desde meados do século XIX. Tiro muitas fotografias, agora menos, mas depois não as utilizo. O teatro nem um trabalho tinha este suporte, nada daquilo existe. As barracas não têm suporte, já não existem assim.


Aprendeu a pintar com a arquitectura?

Aprendi a desenhar com a arquitectura. Não sei se ainda é assim hoje, mas a prova de entrada na escola de Belas Artes para arquitectura, pintura e escultura era saber muito bem desenhar a carvão. Todos os alunos tinham lições de desenho em vários sítios. Na altura, desenhava-se muito a carvão porque tínhamos de prestar provas. A pintura não aprendi na escola, aprendi à minha custa.


Não se sente por vezes preso a uma forma de representar o mundo de uma forma demasiado arquitectónica, realista?

É uma escolha. O meu modo de pintar foi por esse caminho. Pode chamar-se realista. Eu digo um caminho de representar imagens que estão próximas daquilo que a gente vê, o mais próximo possível.


Seria assim que se definiria como pintor e não como realista, hiper-realista?

Eu não pertenço àquelas coisas que têm estado sempre na moda nos últimos tempos. Tenho o meu caminho. Muito ligado, claro, à pintura antiga, ao surrealismo, Magritte. Não que eu esteja muito próximo deles mas venho daí. As pessoas são feitas daquilo que vão vendo em miúdos. Durante anos, enquanto era arquitecto, pintei sem o objectivo de fazer exposições. Fui pintando da maneira que me apetecia. Depois as coisas consolidaram-se, tornaram-se mais interessantes. Cada pessoa vai aperfeiçoando o seu caminho. Há muitos pintores que têm vários. Eu não, segui sempre o mesmo caminho, fui escavando mas sempre no mesmo caminho.


Li que as pessoas ficam muitas vezes ausentes das cenas que pinta, necessariamente habitadas... O Manuel enquanto pintor está sempre lá, há um enquadramento quase fotográfico ditado pelos seus olhos.

São sítios em que quase sempre não está ninguém, mas pode estar. São sítios utilizados pelas pessoas. Já não me lembro quem, mas alguém dizia o seguinte: “percebo muito bem que o Manuel não ponha pessoas porque ele pinta o espaço, a luz, o sossego de um sítio. Se tivesse figuras, personagens, ia poluir a pureza do que se pretende”. Acho que é uma frase interessante. Mas posso dizê-lo também de outra maneira: uma praia com barracas vazia... Se puser uma pessoa, até pode estar sentada a ler muito quietinha, mas está parada, porque tem de estar parada na pintura. Metendo uma personagem, aquela imagem que a gente vê tem um tempo reduzido. Se não está lá ninguém, aquela imagem pode durar meia hora, uma hora ou duas horas que não faz diferença nenhuma. A personagem introduzia o factor tempo, que é uma coisa que não me interessa. O que me interessa é o que se vê de longe, do espaço, o tempo não. De vez em quando ponho personagens mas é muito raro.


Ao princípio fazia personagens de amigos, da Teresa. Nesta exposição vão aparecer vários retratos. Já pintei a Joana mas já foi há muito tempo. É muito raro, não é uma coisa que me interesse. Nos teatros a certa altura fiz aquele truque, não me apetecia pôr actores, pelo que tenho dito até agora, e então lembrei-me de uma coisa boa: imaginei personagens de teatro que não existem, estão paradas, feitas de cartão, o que resolveu completamente o problema. No fim, enchi o palco de personagens, só que não eram pessoas humanas, eram também cenários a fazer de pessoas...


No momento em que está a conceber o trabalho como é que chega às luzes e às sombras?

Chego porque sou arquitecto. Para mim é fácil. Há pintores que pintam muito bem mas não têm formação de geometria descritiva. Não é que o quadro fique menos interessante ou pior, mas os efeitos do espaço e de luz não são tão rigorosos. Também sou rigoroso, mas não se exagere. É fácil para mim fazer uma janela e saber por onde entra a luz e vai bater num bocado de parede e depois no chão. Acho muito bonito a pessoa estar sentada numa cadeira, ver entrar a luz por uma janela. É um espectáculo. Os reflexos sempre me interessaram.


No dia-a-dia, quando não está a pintar, dá consigo a olhar para esses reflexos, é mais sensível a eles?

Estamos sempre a ver coisas bonitas por todo lado. Sempre que olho é bonito...


Vai buscar a matéria-prima onde?

Ao que se vê.


Qual é a sua dinâmica de pintor?

Antes de fazer exposições pintava aos fins-de-semana, nas férias, pintava dois a três quadros por ano, durante anos. Depois comecei a acelerar, fiz uma exposição com o que tinha pintado durante 20 anos. O Cruzeiro Seixas dirigia uma galeria no Estoril e fazia exposições e convidou me. A partir daqui começou a apetecer-me mostrar mais o meu trabalho. Comecei também a pintar mais, a fazer exposições, na galeria de São Mamede, ainda enquanto arquitecto. Depois, pouco a pouco, comecei a vender, e percebi que podia ganhar dinheiro com a pintura. Durante quase 10 anos continuei no meu emprego de arquitectura e a fazer pintura à noite, aos fins-de-semana, e depois larguei. Foi uma decisão pensada. Durante anos pintei oito horas por dia como se fosse um trabalho, nem me passava pela cabeça fazer de outra forma. Foi muito bom porque consolidei a técnica, uma série de coisas, caminhos, tudo. Se eu não tivesse feito esse esforço talvez não tivesse conseguido organizar o meu mundo como organizei. Agora estou muito mais livre. Cansa um bocadinho estar ali oito horas, às vezes mais. Trabalho de pé e chego ao fim do dia cansado.


É um trabalho preciso ou faz muito esboço?

Faço desenhos. Começo sempre com carvão na tela, para as manchas, para fazer a estrutura, e depois é pouco a pouco, por aproximações até ficar acabado. Pinto bem mas gostava de pintar muito melhor. Ao fim destes anos todos a pessoa sempre ganhou qualquer coisa mas... Há pintores verdadeiramente miraculosos, começam um quadro num canto e vão por ali fora... comigo é pouco a pouco. As coisas vão-se equilibrando.


Alguma vez ficou chateado com o resultado?

Muito raramente. E isso acontece porque os quadros são feitos de uma determinada maneira. Estou sempre a reacertar coisas. Mas já aconteceu deitar um quadro fora porque começou a moer e a pessoa não consegue gostar daquilo que está a fazer.


Quando é que pintou o primeiro quadro?

Foi no liceu. Éramos dois ou três amigos durante o liceu e tínhamos a mania que desenhávamos muito bem. Então fartámo-nos de fazer trabalhos, foi assim que comecei as primeiras coisas...


Agora olha para 50 anos de carreira. O que é que sente pela sua obra?

Adoro. Acho que tive sorte. Gosto imenso de fazer aquilo que faço, acho que valeu a pena. Acho que é o melhor que posso dizer. No meio deste planeta e destes triliões e biliões de pessoas também faço coisas que bastantes pessoas gostam, acham interessante.


O reconhecimento dos outros aconchega?

Com certeza. Tudo o que se faz na vida tem de ser reconhecido pelos outros. Uma pessoa aprende a falar precisamente para contactar, para estabelecer relações e para gostar dos outros e os outros gostarem de si. É a história de qualquer pessoa.


E se tivesse de escolher a sua obra de eleição destas que vai agora apresentar...

É muito difícil. Adorei fazer os objectos, as naturezas...


Estas peças existem? São peças da sua vida?

Fui buscar à dispensa. É um recanto do “atelier” que tem uns poiais perto de uma janela e foi aí, todos os quadros dos objectos são feitos neste sítio, mais janela menos janela.


Achei curioso uma sineta que é um objecto recorrente nos quadros. Tem alguma história?

Tem uma história de miúdo em casa dos meus avós. Um quarto-de- hora antes de servir o jantar o criado tocava a sineta. Essa sineta veio parar-me às mãos. Os objectos são sempre lindos. Sempre não... acho a sineta mais bonita que uma coisa destas [aponta para um candelabro]. As armas, de um modo geral, são objectos muito bem desenhados, por exemplo, as espadas. E isto antes de haver “design”.


Como é que chega aos títulos?

O ideal era não dar títulos. Mas depois fazem-se os catálogos... só números não dava e tive de dar títulos. Então os títulos passaram a ser: cadeira verde, porta aberta, esquina... enfim. Em Setúbal, fiz uma série de quadros da zona antiga e depois pensei “agora como é que vou dar títulos aos quadros: esquina da rua não sei quê com a rua não sei que mais, praça não sei quê...”. Não dava. Arranjei um bocado de ficção, como se fosse um filme. As pessoas andavam a passear por Setúbal. Quase que fiz uma história que não existia mas era como se existisse. A pessoa vai ver o quadro, qualquer coisa e eu depois dou-lhe um belisco com o nome que é para a pessoa pensar “deixa cá ver melhor”. É para empurrar a pessoa a ver melhor. Nesta exposição voltei aos nomes, duas barracas, uma barraca de trás. Enfim, o normal, mas para a próxima exposição acho que também vou fazer assim.


Consegue apontar o seu lugar na história da pintura portuguesa?

É um lugar, fora das correntes, digamos correntes oficiais mas acho que tenho uma modernidade - não gosto nada da palavra. Tem interesse para as pessoas minhas contemporâneas. Acho que é bastante singular. Será única porque tudo é único mas é também singular. Ocupo um espaço que é só meu. Normalmente os impressionistas estavam a ocupar um espaço em que havia um grupo de meia dúzia a fazer coisas semelhantes. Eu estou num espaço que é meu. Este é só meu.


Centro cultural de Cascais

Av. Rei Humberto II de Itália, Cascais


tel: 214 848 900


fdluis@gmail.com


De 17 de Novembro de 2007 a 20 de Janeiro de 2008


Das 10 às 18 horas. Encerra à Segunda-Feira


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