Frustração em série

Depois de "Seven", o seu filme mais célebre, David Fincher volta aos "serial killers". Ponto de contactomeramente narrativo, pois "Zodiac" é um filme bastante diferente, com mais "realismo" e menos "estilo" (embora num plano, dentro daroulotte do suspeito, a quantidade de objectos com que Fincher obstrui a vista da objectiva pareça umaremissão, como se o realizador quisesse que a sombra de "Seven" pairasse na mente do espectador). Cineasta moralista, e um dos poucos moralistas interessantes do cinema americano desde a morte deHitchcock, Fincher tenta fazer de "Zodiac", e ao lado do seu programa narrativo "oficial" (o relato daperseguição de décadas ao assassino em série que empresta o seu "nom de guerre", ou de "plume", ao título do filme), um filme sobre o Mal. Ou melhor, sobre a obsessão pelo Mal. Ou melhor ainda, sobre a obsessão pela materialização do Mal. Poderíamos resumir "Zodiac" assim, sem nos enganarmos muito quanto ao que nele é essencial: a saga de um grupo de investigadores (polícias e jornalistas) que sentiu a presença do Mal, que o cheirou e até certo ponto o identificou e o circunscreveu, mas que precisa, como um exorcismo que mate essa obsessão, de ver o Mal materializado, de o fazer coincidir com um corpo e com um rosto. Jake Gyllenhaal, na pele do protagonista (decalcado do jornalista que escreveuo livro que está na origem do argumento), vai num dos derradeiros planos cumprir a parte que lhe épossível cumprir desse exorcismo: não pode dizer nada, não pode fazer nada, apenas contemplar um rosto. Esse é o verdadeiro final de "Zodiac", os planos que vêm a seguir (e são poucos) já estão, nesta perspectiva, a mais, porque já não são planos para as personagens mas para o espectador (e para o conforto do espectador).Estranhamente é quando esse tema - a frustração, isto é a história de uma frustração em série - serecorta com mais nitidez que "Zodiac" perde um bocado o pé. Toda a segunda parte, centrada emGyllenhaal, perde o "ensemble" de personagens que alimentara o filme até aí, perde nervo e perdeambiguidade. Passa a ser, de maneira decepcionante, uma reprodução relativamente convencional dos modos do filme sobre uma "personagem obcecada", até commuito mais "psicologia" do que houvera até então. E a ambiguidade é o terreno em que Fincher está mais àvontade, como o prova a sua restante obra, capaz de pôr meio mundo a discutir o seu sentido "moral" e,mesmo, "ideológico". Por acaso, é sob esse signo que "Zodiac" arranca: a primeira sequência (a primeira entrada em acção do "serial killer),muitíssimo bem filmada, é um prodígio de ambiguidade - a maneira como o ponto de vista oscila das vítimas para o assassino, a maneira como a tortura psicológica e a violência física são encenadas, aquele movimento de grua que vem abrir oplano final da sequência e fazer aparecer um corpo "sobre-humano" no centro do enquadramento, tudoisto é como se Fincher estivesse a filmar a tortura sem evacuar o fascínio pelo poder do torturador. Oua "obsessão pelo Mal" até que ele se materialize: o princípio de "Zodiac" é quase um "raccourci" de todo o filme. (E a outra sequência que expõe detalhadamente a actividade do assassino é filmada como um cerimonial sado-masoquista).

Ambiguidade, ainda, no retrato de época (a história começa nos anos 60, em São Francisco, terra e tempode "hippies" e "contracultura"), e no retrato extraordinariamente sombrio, violento mesmo, dapaisagem urbana. Sem a estilização de "Seven", "Zodiac" filma a cidade como entidade agressiva - por exemplo os ruídos, e nalguns planosa maneira como eles se prolongam dos exteriores para os interiores, como se a cidade invadisse as casas eexpusesse a vulnerabilidade do reduto doméstico. E a velocidade, o tempo constantemente marcado ("duas horas depois", "no dia a seguir": as legendas temporalmente contextualizadoras sucedem-se a ritmo sufocante). Mas isto é sobretudo a primeira parte, mais ampla e descentrada. A partir de certa altura "Zodiac" banaliza-se um bocado, o que é, digamos, frustrante.

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