A luz de Quixote

Os heróis estão cansados, é o que se tem visto nos últimos anos em inúmeros filmes, inclusive oriundos do cinema que mais heróis modernos criou, o americano. Pois bem, os heróis clássicos também estão cansados - é o que se vê em "Honra de Cavalaria", variação sobre Quixote e Sancho Pança, filme sobre o cansaço e a abnegação, o esforço físico e o desgaste mental, e aquilo em que consiste afinal a "honra da cavalaria", a sua exaltada superação (é preciso continuar, é tudo, mesmo que para lado nenhum).

É a primeira longametragem de Albert Serra, catalão. É preciso dizer que se trata de tudo menos de uma adaptação canónica do "Quixote", e que é atédesarmante que um dos principais "paradigmas" do romanesco literário alimente um filme assim,esvaziado de todo o romanesco e sem sombra de qualquer narração clássica. Serra não adapta Cervantes, antes lhe recupera as figuras centraise as lança, literalmente, na paisagem. Há poucos diálogos, e nenhuma peripécia: o caminho é o da rarefacção narrativa, da evidência e materialidade do tempo, da apropriação e reconstrução "icónicas" das figuras de Quixote e de Sancho Pança.

Quixote e Sancho viajam por florestas e colinas, dia e noite, não se sabe nem de onde nem para onde. Descançam, avançam, refrescam-se - e quando falam é para que Quixote incentive Sancho e apele ao seu espírito de sacrifício, recorrendo a Deus e à "honra da cavalaria", intimamente ligadas. Mais do que a inacção, Serra filma o cansaço: nos seus planos, o mais simples movimento surge investido de uma solenidade extraordinária, sente-se o peso e a inércia dos corpos para que melhor se veja otriunfo que é o facto de eles se mexerem e continuarem. Isto faz do filme o registo de uma"performance" física - totalmente rodado em cenários naturais, despido de quaisquer efeitos deespectáculo, "Honra de Cavalaria" não está longe de ser um daqueles filmes que é a "reportagem" da suaprópria rodagem: dois actores, vestidos de Quixote e Sancho Pança, que como dois saltimbancosevoluissem na passagem sempre compenetrados no seu pequeno teatro para espectador nenhum.

Se o romanesco é esvaziado, e o espectáculo espelido, e fica uma aridez narrativa e uma dureza formal que nunca é arredondada, nada disto impede que "Honra de Cavalaria" contenha uma ideia luxuriante de cinema concretizada com um mínimo de meios e de procedimentos. Não impede, por exemplo, que Albert Serra responda a algumas imagens e representações clássicas de D. Quixote - como noutras, ele é aqui, essencialmente, uma figura em contra-picado, inúmeras vezes recortada contra um céu que transforma as nuvens em pinceladas, sempre a meio caminho entre a imanência da presença de um actor e a possibilidade de essa presença se dissolver numa imagem mítica etérea. Assim como não impede que Serra redescubra o mais velho "efeito especial" cinematográfico: a luz. "Honra de Cavalaria" foi totalmente rodado com luz natural, e isso traz-lhe uma materialidade própria, razoavelmente encantatória, sobretudo nos planos nocturnos, ou filmados na aurora ou no lusco-fusco - por vezes o ecrã é apenas uma mancha, onde se agitam, num bailado ao retardador, figuras brancas.

O trabalho sobre as variações luminosas não é o único "efeito especial natural", contudo: há pelo menos um plano de sol, e um plano de lua (este, especialmente longo), que para além da sua beleza plástica condensam, com toda a economia do mundo, o espírito, a crença e o investimento deste Quixote e deste Sancho. É um filme magnífico, sinal - como se não o soubéssemos ainda - de que há mais no cinemaespanhol por baixo da sua almodovarizada superfície.

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