Perdição erótica

Talvez seja preciso esquecer um pouco (muito) dos termos em que Brisseau se refere, em entrevista que publicamos neste suplemente, a "Os Anjos Exterminadores". A investigação "sócio-sexual", o "último tabu", a reclamação de uma espécie de feminismo - tudo soa, perante o filme, a algo entre a "boutade" e a caução defensiva, o que a ser o caso é perfeitamente compreensível dadas as histórias complicadas que lhe aconteceram depois de "As Coisas Secretas". É difícil perceber, pelo seu discurso mas também pelo seu filme, se acredita verdadeiramente, ou principalmente, nesse tipo de pistas (que nos parecem, em grande parte, falsas).

Ora o que "Os Anjos Exterminadores" é, justamente, é a história de um homem - um cineasta, a sua personagem central - que acredita nessa explicação e nesse discurso, mas que se perde na sua "investigação" até chegar a um ponto em que tudo (a explicação, o discurso, a própria personagem) é completamente ultrapassado. O filme que Brisseau faz não é o filme que a personagem do cineasta faz ou quer fazer. O filme que Brisseau faz é um relato de uma viagem de perdição erótica, um mergulho num "lado negro" do desejo, num abismo mais mental até do que físico, vivido num transe mais onírico até do que hipnótico. O jogo de espelhos é, evidentemente, perverso, assim como os seus reflexos são turvos. As tarefas a que o "cineasta no filme" se dedica - no fundo, um longo processo de "casting" - são uma rima directa ou indirecta para o semelhante trabalho de Brisseau: ouvir candidatas a actrizes, desafiar a sua intimidade, testar a sua capacidade de exposição. Não lhes toca, mas leva-as a tocarem-se a si próprias e umas as outras. Põe-se em marcha um cerimonial erótico, com o protagonista arvorado em mestre ritualista e manipulador (e, eventualmente, manipulado: toda a lógica de "Os Anjos Exterminadores" é revertível).

Mais do que um discurso sobre o sexo ou sobre, como diz Brisseau, a "sexualidades feminina", o que conta é este mecanismo e os fantasmas que ele liberta. Brisseau defende uma tendência "surrealizante" e aí, obviamente, não se trata de "boutade" nenhuma. Com mais ou menos reenvios expressos para referências concretas, "Os Anjos Exterminadores" anda à procura de uma "imagética" capaz de reflectir o mesmo tipo de pertubante mistério erótico nalguns clássicos do cinema surrealista - os de Buñuel sobretudo: em certos momentos não andamos longe do espírito dalgumas cenas ou dalguns planos do "Chien Andalou" ou de "L'Âge d'Or". É este investimento, sobrenatural, onírico, psicanalítico, como lhe queiram chamar, que decide "Os Anjos Exterminadores" e o arranca à crueza "expositiva" que caracteriza boa parte das "ousadias" modernas no tratamento figurativo do sexo e dos actos sexuais (pensamos num filme como o "Nove Canções" de Michael Winterbottom, por exemplo).

Até se pode pensar que "Os Anjos Exterminadores" não é um filme inteiramente conseguido, e provavelmente não é. Mas olhemos para onde olhemos, não vemos ninguém a tentar fazer o que Brisseau tenta fazer. Com uma elegância de esteta, a sua "mise-en-scène" abunda em trouvailles e em "arcaísmos" sofisticados - por exemplo, as intervenções do "sobrenatural" (os "anjos" propriamente ditos), assinaladas por pequenas trucagens muito básicas (e quase "mélièsianas") mas perfeitamente encantatórias. Há imensa matéria para "interpretação" no seu filme, mas muito francamente por aí talvez seja secundário, para além de implicar um longo trabalho de separação entre pistas falsas e pistas verdadeiras. O sangue de "Os Anjos Exterminadores" é o cerimonial, a coreografia, a "estetização" do sexo, o balanço figurativo possível entre um grau de inocência e a perversidade da sua consciência. No plano mais indescritível do filme (três raparigas numa cama) estamos perto dos quadros que Botticelli pintaria se tivesse sido contemporâneo de Sade (e, vá lá, adepto de magia negra). É tão simples ou tão complicado quanto isso.

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