O conto dos crisântemos de sangue

Continua a detectar-se no universo "decorativista" de Zhang Yimou a sua formação como fotógrafo de cinema: "A Maldição da Flor Dourada" apresenta uma riqueza de cambiantes (todas as cores do arcoíris) e um cuidado tão extremado na iluminação de interiores que, por vezes, a luxuriante paisagem visual abafa a construção narrativa, sobrepondo-se aos requintes de "mise-en-scène" engendrados para o conflito shakespeariano de um imperador, dividido pelo amor aos seus três filhos, na corte da dinastia Tang, quando, no século X, o palácio Imperial atingia um luxo digno da Versalhes de Luís XIV. O filho segundo do Imperador, Jai, regressa da luta contra os Mongóis, para festejar com a família a festa dos crisântemos amarelos e encontra a imperatriz doente, submetida a uma medicação obrigatória e ritual, que a vai envenenando.

A estrutura operática, em que o cenário da Cidade Proibida joga um papel fundamental, confere ao filmeum hieratismo quase ascético, entre o isolamento doentio da Imperatriz (espantosa Gong Li, próxima de um registo digno da tragédia grega, com a família dos Átridas e a trilogia de Esquilo, "A Oresteia", enquanto omnipresente referente) e a encenação precisa de golpes de artes marciais, tudo cronometrado por "travellings" vertiginosos e por umrigoroso uso dos efeitos especiais.

Como nos filmes mais recentes de Yimou, nomeadamente "Herói", assistimos a uma oscilação entre a epopeia histórica e o espectáculo exposto de um teatro de marionetas, em que a história serve, sobretudo, de pretexto para a ritualização. Noentanto, o modo como se inserem os excursos, em especial o ataques dos "ninjas" da guarda negra doimperador (Chow Yun-fat pouco à vontade com uma personagem algo estereotipada e rígida), permite não só traçar rimas internas com a tradição do "kung fu", mas também apreender a vontade de instrumentalizar a tragédia para evocar filmes como"Ran" de Kurosawa, uma das matrizes já destrinçáveis em "Herói", num esplendor algo mórbido e letal. O usoobsessivo do grande plano nas cenas de interiores contrasta com os picados sobre o mar de crisântemos ou o sangue que os mancha depois da batalha final.

Embora contendo todas as contradições do cinema de Yimou, demasiado fascinado com o brilho da imagem para conseguir captar toda a intensidade trágica, "AMaldição da Flor Dourada" consegue um equilíbrio raro entre as suas componentes e incorpora uminteressante olhar - quase a lembrar as extravagâncias bíblicas de De Mille - sobre o espectáculo da História em cinema.

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