Morreu Jean Baudrillard, pensador polémico da sociedade contemporânea

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Jean Baudrillard PUBLICO.PT

Jean Baudrillard, o sociólogo e filósofo francês que tocou várias disciplinas do pensamento e da arte, morreu ontem em Paris aos 77 anos, depois de uma doença prolongada. Autor de mais de 50 obras, debruçou-se sobre a sociedade de consumo, o terrorismo, os média ou a arte contemporânea com a mesma ferocidade e capacidade de gerar polémica.

O pensador francês é classificado como inclassificável, apenas um dos paradoxos ou contradições que perfizeram a sua obra e as reacções que ela suscitou. Jean Baudrillard é “inclassificável porque não é muito fácil arrumá-lo em nenhuma escola, nem como pensador clássico”, comenta Paulo Varela Gomes, professor de Arquitectura e conhecedor do trabalho do filósofo francês. Era “sobretudo um pensador da vida quotidiana moderna” e um nome incontornável do pensamento pós-moderno.

Nascido a 29 de Julho em Reims, no norte de França, viveu o movimento do Maio de 1968 e começou a sua carreira como tradutor do trabalho de Karl Marx e Bertolt Brecht. Leccionou Sociologia na Universidade de Nanterre, em França, desde 1966, depois de uma formação em germânicas. Em 1968, próximo dos situacionistas de Guy Debord, publicou Le Système des objects, uma machadada num retrato já de si pouco favorável que desenhara da sociedade moderna de consumo, consumada com La société de consommation (1970).

Baudrillard era possuidor de “um pensamento polémico que tendia a extremar a situação da imagem da sociedade contemporânea, em teses que considero serem muito exageradas, como que o real se desvaneceu e que vivemos apenas num simulacro”, opina José Bragança de Miranda, docente nos cursos de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade da Beira Interior.

Acusado de ser niilista e moralista, descreveu a arte contemporânea como uma “nulidade” e as “massas” como cúmplices da ordem social, que as enriquece. Um dos seus textos mais polémicos foi La guerre du Golfe n'a pas eu lieu (A guerra do Golfo não aconteceu, de 1991, sem tradução em Portugal). José Bragança de Miranda critica “esta visão do real” do sociólogo e filósofo francês, que desembocou na sua “incapacidade de compreender o tsunami, os fenómenos naturais, a guerra – que ele reduz a uma espécie de espectáculo”. Já Paulo Varela Gomes considera que Baudrillard “polemizava, exagerava de forma a tornar claro um argumento, para combater o moralismo das essências, da verdade, da realidade”.

Jean Baudrillard escrevia com algum humor, negro, e acompanhava a ironia com aforismos, por vezes herméticos, que eram sua imagem de marca, escreveu ontem a edição on-line do diário francês Libération. Atento à actualidade, escreveu O Espírito do Terrorismo (Campo das Letras, 2002) e Requiem pour les Twins Towers (2002) sobre os atentados de 11 de Setembro. Neles tece o argumento de que há uma lógica subsequente ao terrorismo e descreve o ataque às Torres Gémeas como “a mãe de todos os acontecimentos”.

Assinou obras incontornáveis do pós-modernismo como Simulacros e Simulação (Relógio D’Água, 1981), Le Mirroir de la Production (1977), em que rompe com as suas bases marxistas, Pataphysique (2002)ou Amérique (1986), onde descreve os Estados Unidos como “a versão original da modernidade” e “utopia realizada”. Teve tempo de redigir as suas memórias em cinco actos, Cool Memories (desde 1987 a 2005).

Colunista do Libération, “um grande escritor e um excelente fotógrafo”, elenca José Bragança de Miranda, “era uma personalidade muito complexa que se movia muito à vontade no pós-modernismo”. Contudo, o docente não prevê grande futuro para a obra de Baudrillard, para além do contributo para “a constituição do imaginário contemporâneo”, “patente no Matrix dos irmãos Wachowski e no eXistenZ de David Cronenberg”. “É um pensamento que não tem repercussão”, disse ao PÚBLICO, pelo seu apego à metafísica que tornava as ideias do pensador francês “um pouco repetitivas” e paradoxais.

Bragança de Miranda observa que “as teses do simulacro são altamente problemáticas, porque a serem verdadeiras a posição dele não seria sustentável, seria um paradoxo”. Paulo Varela Gomes, que recorda não ser especialista em sociologia, confessa: “para a minha própria evolução enquanto pensador da estética, da cidade, foi o autor mais influente que eu li em 20 anos. Ensinou-me a desconfiar desse pensamento moralista que nos anda a tentar dizer que as coisas têm uma essência, que têm uma verdade, e ele ensinou-me a desconfiar exactamente disso”. O pensador francês ainda não encontrou a unanimidade.

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