Uma Personagem em Busca de Autor

O alemão Mark Forster entrou na lista dos realizadores a ter em conta, graças a dois sucessos consecutivos: "Monster"s Ball" / "Depois do Ódio" (2001), apenas notório, porque recebeu o Óscar de melhor actriz para Halle Berry, no ano de todos os afro-americanos (a correcção política "oblige"), e "À Procura da Terra do Nunca" (2004), uma rebuscada fantasia, à volta do autor de "Peter Pan", James M. Barrie, a dar a Johnny Depp um importante veículo de grande público. Há duas ilações a tirar, desde logo, destes dois títulos: uma atenção renovada ao brilho das estrelas e o facto de não haver nada neles que os associe, nenhuma marca distintiva que nos permita falar de uma visão reconhecível. Agora, "Contado Ninguém Acredita" (título português convenientemente inacreditável para "Stranger Than Fiction") vem confirmar ambas as premissas: o filme repousa no carisma das estrelas e consegue, apesar da imensa diversidade entre elas, uma razoável coerência de registo; e pouco tem a ver, estilisticamente, com as obras anteriores.Se quisermos encontrar antecedentes para esta estranha fábula autoconsciente, em que uma personagem de romance se apercebe da voz da narradora, que planeja matá-lo, no final do romance, teremos que procurar noutros universos, nomeadamente nos bizarros exercícios sobre a manipulação do real na ficção e da ficção no real, assinados pelo bem mais talentoso Spike Jonze: o originalíssimo, "Queres Ser John Malkovich?", cruzando a representação de um mundo improvável com a existência de John Malkovitch, ele-próprio e personagem-modelo; e, sobretudo, "Inadaptado", em semelhante viagem à transformação das formas narrativas, com a capacidade inventiva para alterar os dados da ficção "escrita", ao sabor da ficção fílmica.

Dito isto, "Contado Ninguém Acredita" cumpre a sua função de prender a atenção do espectador, enredando-o numa teia complexa de jogos, dentro e fora das personagens, em pirandelliana (a Pirandello e ao seu "Seis Personagens à procura de Autor", fomos, aliás, buscar o título para este texto) autoreflexão sobre os mecanismos ficcionais: Harold Crick (um Will Ferrell controlado e minimamente credível num funcionário dos impostos) "existe", mas depende da trama de uma criadora, habituada ao trágico mau hábito de conviver com a morte (Emma Thompson, igual a si própria, requintando no sotaque britânico e nos tiques teatrais, que associamos à sua "persona") e à necessidade de resolver os seus romances com fim infeliz.

Para completar a panóplia de nomes consagrados, Dustin Hoffman confere ao seu professor de Teoria da Literatura uma outra instância de recurso, dentro da inflexão das peripécias, uma ironia apropriada. Queen Latifah reduz-se ao papel de coadjuvante, numa agente sem outra função do que a de ajudar a completar a acção da escrita, disciplinando a escritora-narradora. Por fim, Maggie Gyllenhall funciona como pólo de interesse romântico, a dona de uma pastelaria, a desencadear no neutro e assexuado protagonista instintos de sobrevivência e razões para querer inverter o "inevitável" final infeliz. Tudo muito bem (demasiado) encadeado, tudo no seu lugar, para permitir aceder à alteração das expectativas. Em tom de tragicomédia, assistimos, pois, ao ponto de retorno: a narradora cede às razões da personagem, dando-lhe a oportunidade de amar e "estraga" a perfeição do seu epílogo, tal como o filme, consciente de todos os seus cordelinhos, desde o início, "arruína" as suas capacidades para surpreender, enquanto corresponde ao plano, cuidadosamente explanado de se autorevelar. O problema é mesmo esse: à força de querer mostrar-se diferente, constrói um labirinto de "déjà vu", sem remissão, uma fábula pós-modernista, com o pós-modernismo à vista. Recomenda-se a quem gostar de exercícios de estilo pelo prazer da estilização.

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