Vitória amarga

Talvez seja a grande questão: por que razão "As Bandeiras dos Nossos Pais", filme sobre uma vitória militar estratégica e simbolicamente importantíssima, tem uma ressonância tão amarga e um desenvolvimento sempre no sentido de um desconforto crescente? Claro que este apagamento da euforia não é novo no cinema de Eastwood - e pensamos muito em "Imperdoável" durante a projecção de "As Bandeiras dos Nossos Pais", filmes que falam um ao outro e que, embora com pretextos narrativos diferentes, percorrem territórios similares. Não se trata de encenar uma reversibilidade e de transformar uma vitória numa derrota, mas a coloração delas (da vitória e da derrota) é uma chave para o díptico "As Bandeiras dos Nossos Pais"/ "Cartas de Iwo Jima", um filme amargo sobre a vitória seguido de um filme doce sobre a derrota.

Para já, "As Bandeiras..." e o seu desconforto. Diríamos que sem deixar de ser uma evocação de um facto concreto, a tomada de Iwo Jima, o seu centro é habitado por uma reflexão sobre a América como produtora de "heróis" e de "lendas", de ficções construídas pela redução da história a um punhado de elementos onde o "arquetípico" e o "anedótico" se confundem. A célebre moral fordiana, no seu "O Homem que Matou Liberty Valance" ("quando a lenda se torna facto, imprima-se a lenda"), é inteiramente para aqui chamada (como em "Imperdoável"). Não se trata, para Clint, de decompor a "lenda", personificada aqui pela foto de Joe Rosenthal, mas de se debruçar sobre os efeitos da sua "impressão" - e isso é toda a história dos soldados-heróis em "tournée" pela América, dissolvidos na "décalage" entre a sua experiência individual e o estatuto impessoal, o "símbolo", que passam a representar.

Há algo de profundamente político, no sentido mais lato da palavra, neste gesto de Clint. Num sentido mais restrito e mais contextual, também: Clint filma a América na guerra, e mais do que isso a percepção pública da América na guerra e o modo como a América se auto-encena nessas circunstâncias, num momento em que o Iraque continua ao fundo, num estado indefinido algures entre uma guerra e um pós-guerra. De resto, se há outro grande tema neste filme ele é o do "regresso", o do regresso dos soldados. Voltam de onde, voltam para onde (e quem volta)? As respostas a essas perguntas, solitárias e individuais, são substituídas por uma grande ficção "desumanizante" pronta a servir - arvorados em heróis e em símbolos, os soldados lutam contra a dissolução da sua experiência e, a partir daí, da sua identidade. Não têm outra vez além da do papel que lhes foi reservado no quadro da grande "ficção" de que se tornaram actores.

"Mutatis mutandis", "As Bandeiras dos Nossos Pais" é aproximável de "Homecoming", o telefilme de Joe Dante, este sim explicitamente sobre o regressos dos soldados que combateram (e morreram) no Iraque (mas a que se juntam os soldados de outras guerras, incluindo a II). Em termos mais "teórico", e o filme de Clint é bastante "teórico", trata-se de mostrar a imposição de uma "retórica" da guerra (o "heróismo", o "patriotismo") e dar conta dos seus efeitos - sobretudo dos seus efeitos simplificadores.

Isto, como é óbvio, não tem apenas que ver com Iwo Jima e com a II Guerra. Como não tem a questão do principal símbolo americano - a bandeira. São belíssimos os planos em que Clint filma a bandeira hasteada no Suribachi. Vulnerável como nunca, dá-se a ver na sua fragilidade de objecto mais do que na sua abstracção de símbolo. E nesse sentido, representa qualquer coisa diferente: o esforço e o sacríficio de um grupo de soldados. Talvez por isso se dê o quase anedótico (mas significativo) episódio da troca de bandeiras. É como se não fossem "nossas", mas dos "nossos pais", e delas não fôssemos proprietários mas depositários. O filme de Clint (como em parte o de Dante, como o romance de Philip Roth "A Conspiração Contra a América", só exemplos recentíssimos) detém-se nesse equilíbrio periclitante entre o que é da ordem da fidelidade a um legado e o que não passa de obediência a um apropriamento, eventualmente "desviante", desse legado. Lembrar os pais, os "pais americanos", é um acto político.

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